I. INTRODUÇÃO
Como historiadora das religiões, sempre me preocupei com a atuação dos leigos e leigas na sociedade, dos sujeitos comuns que tecem práticas que costumamos chamar de “populares” em oposição às práticas da ortodoxia. Nas últimas duas décadas, pelo menos, vivemos um processo de aceleração do tempo promovido pelo desenvolvimento das tecnologias informáticas, pela globalização e pela popularização da internet, o que me fez pensar na midiatização da cultura religiosa ou na construção de uma cultura digital da religião, o que Malena Contrera e Norval Baitello Jr., irão chamar de “razão tecnológica” e “industrialização do espírito”, fomentada principalmente pelas redes sociais como o Facebook, Twitter, Instagram, blogs e jornais eletrônicos: “Esvaziadas as possibilidades mágico-simbólicas das coisas do mundo, a busca do sagrado e do sentido se transfere para os processos, daí advém a centralidade dada à tecnologia nos últimos séculos”. Quais seriam então, as relações entre mídia e religião na contemporaneidade? Partimos do pressuposto que estas estabelecem entre si uma relação complexa de negociação, na qual uma usa do poder da outra para se afirmar, em uma relação de retroinfluência, assim “a religião é midiática, assim como a mídia é religiosa”.
Hoje em dia podemos rezar, acender velas, casar e até morrer virtualmente. Nas redes sociais, compartilhamos correntes de sorte (para o azar de quem as recebe), consultamos nosso horóscopo, numerologia, runas, orixás. É possível entrar no site do santuário de Aparecida, por exemplo e acender uma vela virtual, além de encomendar uma missa para os entes queridos que “se foram desta para melhor”, ou ainda, em sites como o Personare podemos espreitar nosso futuro com alguma cigana cartomante ou consultar o conselho de nosso Orixá guia.
A desmaterialização das coisas, corresponde assim, à própria deterioração da sacralidade, convertida agora em uma espécie de auto adoração e narcisismo reforçados pelo fenômeno das redes sociais, nossos alter ego virtuais. É a “mídiamorfose da fé”, da qual nos fala Moisés Sbardelotto. Uma vez que mídia e religião são estruturas de mediação social, as práticas de fé se metamorfoseiam “cada vez mais em sua relação com as práticas e os processos sociomidiáticos”, o que significa ainda, que as tênues fronteiras entre o religioso e o secular acabaram por se romper totalmente na era da internet.
Se na década de 1990, os Engenheiros do Havaí se referiam ao Papa João Paulo II, como um líder pop, abreviatura inglesa para popular, vimos nascer na segunda década do novo milênio, após um hiato de oito anos correspondente ao papado de Bento XVI, um novo líder carismático, marcado pela humildade, bom humor, disponibilidade física apesar de seus 76 anos, antenado com as novas tecnologias que, cotidianamente, posta mensagens em sua conta no Twitter com quase 5 milhões de seguidores.
Jorge Bergoglio, o Papa Francisco é considerado por muitos como progressista e supostamente aberto às discussões da contemporaneidade como o acolhimento da Igreja ao público LGBT, o divórcio, o aborto e a inclusão das mulheres na cúpula eclesiástica. Francisco e sua imagem carismática produzida pela mídia, cativa jovens, egressos da Igreja Católica, caindo até nas graças daqueles que não são católicos ou que se consideram agnósticos ou ateus. Entretanto, nunca um Papa falou tanto do Diabo.
Em suas homilias, vemos nascer outro discurso, mais conservador, preocupado com as influências da tecnologia na vida cristã, crítico da mídia, e, principalmente, defensor do combate ao Príncipe das Trevas em sua forma mais personificada, e, é nessa dualidade que iremos nos concentrar.
Quais as representações sobre o inimigo da Igreja presentes no discurso oficial do Papa Francisco? Quem é o Diabo no século XXI? Como ele atua? Não pretendemos responder todas estas questões neste breve artigo, mas pretendemos apontar alguns caminhos possíveis para a análise deste fenômeno.
II. DESENVOLVIMENTO
1. As Diversas Máscaras do Diabo.
“Il diavolo c’è anche nel ventunesimo secolo”, disse o Papa Francisco, em uma de suas meditações quotidianas de abril de 2014.6 A volta do Diabo na contemporaneidade, ou ao menos, a sensação da presença de um mal iminente também é notada também pelos exorcistas da AIE: o mal assume continuamente uma série infinita de máscaras”, diz Vittorino Andreoli, um dos membros notáveis da Associação.
Do grego, diábolos, caluniador, maldizente; pelo latim, diabolu, aquele que divide. Até o século XII, não existia uma representação única sobre o Diabo no sistema teológico da Igreja Católica que fosse capaz de se opor aos dos pagãos. Predominava somente, a visão de um “combate cósmico” entre Deus e seu opositor, o Mal, representado depois na união entre diversas figuras do Antigo e do Novo Testamento: a serpente que tenta Eva (Gn 3: 1-13); Lúcifer, o anjo rebelde (Is 14: 12-15); o Dragão de sete cabeças (Ap 13:1). Santo Agostinho constrói sua teoria a partir da premissa de que o Mal só existe porque Deus permitiu, a fim de mostrar o caminho do Bem aos seres humanos. A noção de pecado é naturalizada na ideia do “pecado original” e o Diabo atua como agente regulador do comportamento humano.
A representação que ganha força ao longo do século XII, e, vai fundamentar a demonologia católica no século XIII, é a do anjo caído. Lúcifer, um Serafim na hierarquia angélica, orgulhoso e insurreto, recusou-se a reverenciar a criação perfeita de Deus, o homem, e obstinado a criar seu próprio reino, caiu dos céus:
Como você caiu dos céus, ó estrela da manhã, filho da alvorada! Como foi atirado à terra, você, que derrubava as nações! Você, que dizia no seu coração: “Subirei aos céus; erguerei o meu
trono acima das estrelas de Deus; eu me assentarei no monte da assembleia, no ponto mais elevado do monte santo. Subirei mais alto que as mais altas nuvens; serei como o Altíssimo”. Mas às profundezas do Sheol você será levado, irá ao fundo do abismo! (Is 14: 12-15).
À imagem do Serafim caído, outras se somaram, principalmente, àquelas relacionadas aos cultos de deuses pagãos, como o deus Pan. A imagem do bode sabático se popularizou na Idade Média ao lado de outras representações animalescas: serpente, dragão, cão, lobo, raposa, moscas, gatos, porco, salamandra, sapo, asno, centauros. Presente no reino da noite, dos lugares ermos e frios, o diabo medieval traz como traço principal, a figura do desafiante, o propositor de pactos, o sedutor, mas também, a vítima de zombarias, burlas e ludíbrios (Cf. BURTON, 1984).
No final do medievo surgiu a versão majestosa de Satã soberano em seu trono, uma relação com o poder real terrestre, mas essa imagem da Majestade Infernal não é única ou definitiva, ao seu lado, se popularizou também a representação de um monstro voraz que engole os pecadores e os defeca na danação eterna como nos aterrorizantes quadros de Hieronymus Bosch (1450-1516).
Muchembled ao analisar a história do imaginário sobre o Diabo a partir do conceito de civilização delineado por Nobert Elias, afirma: “(...) as metamorfoses da figura do Mal em nossa cultura falam igualmente da infelicidade dos homens no seio de sua sociedade”. O autor parte da diferenciação entre uma cultura popular e uma cultura erudita, sendo esta última, “criadora” das representações demoníacas, e, a primeira, responsável pela disseminação da figura da feiticeira que fazia pactos e mantinha relações sexuais com o bode infernal.
Ainda que o debate teórico que tende a opor uma chamada cultura erudita de uma cultura popular, ao meu ver, tenha sido resolvido com o conceito de circularidade cultural proposto por Mikhail Bakhtin, é importante ressaltar que no século XIV foram criadas as representações mais duradouras sobre o Diabo até o momento. Destaca-se ainda, a ascensão do tema do purgatório, chamando atenção para os pecados mortais, o medo da danação eterna, os castigos infligidos por legiões de demônios prontos a devorar-lhes.
A demonologia, ainda frágil naquele momento, se fortaleceu, principalmente, a partir de São Tomás de Aquino e produziu no século seguinte uma gama de manuais de feitiçaria, de livros de prédicas aterrorizantes e de opúsculos que tratavam sobre os cuidados com a vida no além.
O século XV embalado pelas imagens terríveis consolidadas na iconografia católica, na arquitetura das Igrejas, Livros de Horas, na literatura dantesca e na arte clássica, trouxe para a teologia demonológica outra representação: a dos demônios híbridos, répteis, pássaros com corpo humano, grylles (uma cabeça com membros, sem corpo, imagem corrente na Idade Média), presente nas obras de Bosde Cantimpré. Nasce um diabo bestializado: negro, figura disforme, cabeça de cão e um longo rabo entre as pernas.
Esta representação selvagem, fortaleceu ainda mais a ideia de que se o demônio poderia possuir animais e materializar-se em feras noturnas, faltava pouco para que ele pudesse possuir o corpo dos pecadores para transformá-los à sua imagem, medo este, bem representado nas hagiografias de Santo Antônio e São Francisco.
No início do século XV a Igreja enfrentava diversas questões internas, ligadas, especialmente à reflexão sobre o poder pontifical, o que provocou uma epidemia de caça às feiticeiras. Se iniciou, então, uma perseguição às práticas heréticas, das quais destaca-se a dos valdenses13 que utilizava elementos e práticas posteriormente atribuídas à feitiçaria: o sabbat, as reuniões noturnas e o contato direto com os espíritos. Não obstante, criou-se também um estereotipo da feitiçaria que atingiria, principalmente, as mulheres. A imagem da bruxa (geralmente, uma mulher velha e enrugada, como representada por Goya) voando em uma vassoura para o sabbat e cercada de demônios predomina no imaginário do baixo medievo e da modernidade. O excesso de tensões deste contexto tendeu a generalizar os diversos modelos de heresia e feitiçaria e a combatê-los indiscriminadamente.
No Seiscentos a imprensa aparecerá, ao lado da arte, como uma “arte diabólica”, responsável por semear as diversas imagens de Satã. Visto como o Príncipe do Mundo, o Diabo desponta como o sedutor que atrai mulheres ingênuas e homens arrogantes que buscam o poder:
Depois de ter sido um homem deformado, Satã se apresentava a partir de então como uma potência inumana, um rei tirânico, mas também como um ser inapreensível, capaz de encarnar-se em um envoltório animal ou híbrido, apto a introduzir-se em todo e qualquer corpo vivo. Depois de ter-se transformado em fera, será que não lhe era possível ser capaz de invadir igualmente o homem?
O corpo humano nu e desprotegido, pouco a pouco, tornou-se o espaço preferido de atuação do demônio e o objeto preferido de condenação da Igreja. As imagens de homens e mulheres desnudos abundam na arte através das pinturas de Lucas Cranach ou de Michelangelo e incomodavam tanto, que o Concílio de Trento ordenou a cobertura dos genitais mostrados em obras por toda a Itália. No entanto, o olhar malicioso sobre o corpo, principalmente, o corpo feminino, já havia sido lançado.
As imagens da nudez feminina, cercadas de simbologia sexual, desde o século XIV, foram definitivamente associadas ao pecado e às tentações da carne. A mulher, tornou-se a serva preferida do Diabo, manifestada na potência mágica da feitiçaria, explorada amplamente pelos manuais de conduta da época e pelo Malleus Maleficarum, ela se torna também símbolo da morte.
O corpo feminino seria o canal, por excelência, da atuação do Diabo e o aumento da perseguição às feiticeiras em meados do século XVI demonstra a própria intensificação do medo ao Diabo, eleito agora como inimigo principal da Igreja, tanto da Católica, quanto da Reformadora.
Embora não seja possível falar de uma demonologia unificada neste período, os teólogos da época15 estabeleceram um consenso sobre os elementos que
caracterizariam uma filiação às seitas demoníacas: o pacto com Satã, a participação no sabbat e a prática de malefícios.
A noção de possessão já dominava o imaginário religioso da época quando Jean Wier publicou em 1563, o De Praestigiis daemonum et incantationibus et veneficiis que “admitia a existência e as iniciativas de Satã”, mas via as feiticeiras como enfermas e melancólicas, não como possessas, iniciando assim, um longo debate intelectual, que se estende ainda hoje, no século XXI, sobre as relações entre a doença psiquiátrica e a possessão diabólica. Essa associação, entretanto, não impediu que centenas de mulheres e homens fossem queimados pelos Tribunais da Inquisição e tampouco, significou naquele contexto, uma separação entre a religião e a medicina, saberes extremamente imbricados um no outro. Como afirma Lucien Febvre (2009), a incredulidade, ainda não era um dispositivo atuante naquele momento.
O sacramento do batismo, tido como o primeiro exorcismo, pelo qual deveria passar todo cristão, ganhou visibilidade nesse contexto. Em 1560, o exercício do exorcismo atingiu um auge. O principal alvo eram as mulheres, vítimas de sua própria sexualidade, mais propensas às seduções diabólicas por sua personalidade crédula e supersticiosa. O corpo feminino era a moradia preferida do Diabo. Michel de Certeau ressalta que o discurso demonológico, neste momento, opera por meio de seus conceitos uma realidade interior do corpo possuído:
[...] nomeando-lhe as aflições, multiplica os demônios e fornece sentido – o único sentido possível, no mundo cristão ocidental – a uma experiência desconcertante, feita de tartamudeios e afasias, ruídos e incompreensões: é a gramática diabólica, intuída pelo processo, posta às claras pelo exorcista.
Neste contexto, tanto protestantes quanto católicos concordavam sobre a premissa da existência e do poder do Príncipe das Trevas, assegurando, inclusive, que ele não precisava de permissão para tomar qualquer corpo humano como seu. O século XVII traria um pessimismo generalizado, caracterizado pelo agravamento do pecado e do medo, representados na arte maneirista18, na literatura trágica e na difusão dos Espelhos da Alma e manuais de bem-morrer. O sentimento de culpa dominava a literatura, a arte e o imaginário cristão. Proliferavam-se os casos de possessão, principalmente, dentro de mosteiros e conventos, a exemplo de Gaufridy (1610-1611) e Loudun (1632-1634).
Não obstante, o modelo diabólico construído até então, não fosse uniforme, era bastante sólido. A partir do século XVIII, a partir dos intensos confrontos no âmbito do processo de secularização europeu, a imagem do Diabo some da arte e, mesmo, do debate entre os saberes religioso e científico, todavia, ela permanece ainda na base de uma cultura do medo que perdurará pelo menos até o início do século XX.
No Oitocentos, em contrapartida ao roman noir, de influência francesa, que traz a satirização do Diabo enganado e superado pela malícia humana, a proliferação da literatura de terror no estilo inglês, penny dreadful, trazia a influência de demônios e outros seres sobrenaturais – vampiros, fadas, salamandras, lobisomens –, na vida
humana e denotava o quanto Satã ainda reinava no mundo material. O demônio se personifica no próprio homem, a exemplo do Frankestein de Mary Shelley (1818), no qual, a encarnação do Mal não era a criatura, mas seu Criador.
A nova Reforma da Igreja romana, a partir do Concílio Vaticano I (1859-1860), denota o choque sofrido com a separação do Estado e com o movimento anticlericalista estimulado pela Revolução Francesa no final do século XVIII, mas acaba por fortalecer a ideia da existência no Mal e na sua personificação na figura de Satã.
O interesse pelo mundo sobrenatural retorna, mas agora sob a face de um cientificismo que busca estudar os mistérios do oculto. O sucesso de duas obras do abade Alphonse-Louis Contant (1810-1875), conhecido como Éliphas Lévi: História da magia e A chave dos grandes mistérios mostra o fortalecimento da figura do Diabo, materializado na imagem de Baphomet e reverenciado nas sociedades esotéricas.Além disso, cresce a influência das filosofias de inspiração oriental, como o hinduísmo, o demonismo, a teosofia. O Espiritismo desponta como uma religião científica que desafia os limites entre o mundo natural e o sobrenatural. Para lutar contra a influência do ocultismo, a Igreja reedita na Europa, diversos Catecismos, agora em versão ilustrada que trazem a imagem de um “Satã negro, de asas abertas, com um tridente nas mãos”. Em 1884 foi publicada a encíclica Humanum Genus do Papa Leão XIII, de cunho antimaçônico, na qual o Sumo Pontífice afirma:
O gênero humano, após sua miserável queda de Deus, [...] “pela inveja do demônio”, separou-se em duas partes diferentes e opostas [...]. Uma é o reino de Deus na terra, especificamente, a verdadeira Igreja de Jesus Cristo; [...] A outra é o reino de Satanás, em cuja possessão e controle estão todos e quaisquer que sigam o exemplo fatal de seu líder e de nossos primeiros pais, aqueles que se recusam a obedecer à lei divina e eterna, e que têm muitos objetivos próprios em desprezo a Deus, e também muitos objetivos contra Deus.
O século XIX traz, assim, a figura de um Diabo interiorizado, não mais externo, agora ele se confunde com o próprio homem e suas paixões: “o demônio oculto no coração”. A psicanálise de Freud traz os elementos psicológicos para se pensar os demônios pessoais, distintos agora, dos “familiares” das bruxas e feiticeiras de dois séculos atrás. É notável a capacidade de transformação/resistência da representação de Satã ao longo do tempo.
O início do século XX, por sua vez, desponta com a criação de seitas satanistas como doutrina esotérica e que demonstravam uma recusa à Igreja e à Deus e uma atração pelo oculto. No final da década de 1970, o padre Gabrielle Amorth começa sua jornada como exorcista e procura apoio no alto clero do Vaticano. João Paulo II, apesar de reforçar o discurso sobre a presença do Diabo no mundo, não oficializa a causa da Associação. Somente em 2013, o sacerdote encontrará um apoiador incondicional: Jorge Bergoglio, o Papa Francisco.
2. Francisco e a Associação Internacional de Exorcista.
Em 21 de maio de 2013, dois meses após o conclave22 que elegeu o argentino Jorge Bergoglio como novo Papa da Igreja Católica ocidental, os sites religiosos italianos e estrangeiros deliraram com um vídeo do Papa Francisco supostamente executando um exorcismo em um rapaz, em plena Praça de São Pedro, no coração de Roma, assim noticiado pelo jornal La Stampa:
Estamos na Praça de São Pedro, exatamente nas proximidades do Arco dos sinos. A missa de Pentecostes acabou de terminar. Francisco começa, como sempre, com os doentes que participaram da celebração. O Papa se aproxima de um menino. O sacerdote que o acompanha o apresenta ao Papa com algumas palavras que não podem ser compreendidas. Mas a expressão de Francisco de repente muda. O Papa parece pensativo e focado e estende as mãos sobre o jovem rezando intensamente, enquanto o menino abre a boca. ‘Os exorcistas que viram as imagens não têm dúvidas: era uma oração de libertação do maligno ou um exorcismo real’, diz a Tv2000.
A representação da cena presume uma teatralidade, “a ação do corpo em presença põe em movimento gesto, voz, cenários, espacialidades, temporalidades e faz da performance jogo poético”. O Diabo que estivera relativamente à margem durante o Papado de Bento XVI volta à cena de tal forma que rende à Francisco o epíteto de “novo João Paulo II” em alusão à política de perseguição ao demônio empreendida na década de 1980/90 pelo papa polonês.
Aliás, Francisco é performático desde sua primeira aparição em público, a começar pelo ‘Buona sera” com o qual saudou o povo na Praça de São Pedro, pedindo logo em seguida um momento de oração dedicado ao Pontificado que se iniciava; passando pela recusa ao uso dos aposentos papais e ao uso do anel dourado e das vestes suntuosas; Francisco faz questão de carregar sua própria mala ao embarcar em um avião, além de investir na relação corpo a corpo com seus fiéis, dando coletivas à imprensa com grande frequência, quase sempre, quebrando o protocolo formal.
A conduta do Papa Francisco no tocante ao tema do Diabo, também vem sendo continuamente questionada por parte da mídia leiga e católica italiana (destacamos,por exemplo, as matérias mais céticas publicadas no jornal Corriere della Sera), ao passo que nos jornais L’Osservatore Romano e La Stampa em seu caderno Vatican Insider, as matérias são pró-Papa. Essa discussão parece não chegar à mídia brasileira, à exceção de sites como Aleteia e a versão em português do Vatican Insider.
Neste sentido, é crucial nesta análise, pensar a relação travada entre o Papa Francisco e a Associação Internacional de Exorcistas (Associazione Internazionale degli Esorcisti), reconhecida juridicamente em dois de julho de 2014, pela Congregação para o Clero. Segundo o padre Francesco Bamonte (1960), da ordem Servos do Coração Imaculado de Maria e presidente da Associação desde 2012: “Na longa história da Igreja ainda não se havia constituído uma associação deste calibre: também isso é um sinal dos tempos!”. A notícia se espalhou rapidamente provocando questionamentos na mídia e na comunidade católica em geral, sobre a validade de uma prática, considerada por alguns, antiquada, como o exorcismo.
Existente de forma extraoficial desde setembro de 1991, a Associação foi idealizada pelo Padre Gabriele Amorth (1925-2016) que, desde os anos 1980, promovia cursos de capacitação e formação de novos exorcistas, bem como, organizava encontros, a nível nacional (Itália) e internacional, a fim de que estes compartilhassem suas experiências e construíssem estratégias de inserção nas igrejas locais e dioceses. (Há inclusive um filme-documentário na Netflix sobre ele, chamado Padre Amorth e o Diabo).
A Associazione Internazionale degli Esorcisti possui em seu conselho, uma hierarquia bastante clara. Composta por doze membros: um presidente, um vice-presidente, uma secretária e nove padres que desenvolvem atividades diversas, sendo um deles, psiquiatra. A eleição dos membros é quadrienal e os cargos devem ser ocupados por bispos de vários países. Os bispos são considerados dentrocomo representantes dos apóstolos, portanto “atuam com uma ordem recebida de Cristo de expulsar os demônios em Seu nome”.
É importante notar que a Associação é composta também por pedagogos, psicólogos, neurologistas e psiquiatras que atuam no sentido de descartar problemas patológicos que, porventura, possam ser confundidos com possessão ou influência demoníaca. Assim, a articulação entre o saber médico e o saber religioso é fundamental no sentido de dar legitimidade ao trabalho do exorcista. Para o padre Bamonte: “A primeira preocupação de cada exorcista de bom senso é a de evitar de criar ou manter ilusões de uma possessão quando esta não existe.”
Além disso, a Associação tomou como objetivo promover uma contínua renovação dos estudos sobre o exorcismo, em seus vários aspectos: dogmáticos, bíblicos, litúrgicos, pastorais e espirituais.31 Um dos resultados, por exemplo, foi a publicação de um novo Ritual de Exorcismos32 em 1999, pela Igreja Católica e a reafirmação através da voz de João Paulo II da existência e da necessidade de combater o Diabo.
É válido ressaltar que somente um bispo ou um padre autorizado por este, tem o poder de executar exorcismos ou de reivindicar uma investigação sobre um caso de possessão. Essa norma está prevista no Código de Direito Canônico, Can. 1172:
§1. Ninguém pode legitimamente exorcizar os possessos, a não ser com licença especial e expressa do Ordinário do lugar.
§2. Esta licença somente seja concedida pelo Ordinário do lugar a um presbítero dotado de piedade, ciência, prudência e integridade de vida.
O papel do bispo é fundamental no contexto do exorcismo. A AIE identifica-os como os bons samaritanos, responsáveis pela continuidade do trabalho de Cristo: a caça e a expulsão dos demônios. O ministério do exorcismo conforma, entre tantas funções, a responsabilidade de distinguir as possessões demoníacas das enfermidades psíquicas, assim. Esta é, inclusive, uma grande preocupação da Associação, diante do crescimento do diagnóstico de doenças como depressão, bipolaridade e distúrbios de personalidade.
O Exorcistato prescinde de uma intensa formação eclesiástica, na qual, o objetivo principal é dotar o sacerdote de perceber e lutar contra a presença diabólica no homem. Neste sentido, o estatuto da Associação aprovado pela Congregação para o Clero prevê em seu artigo 3, as seguintes funções:
§1 Promover a primeira formação de base, e a sucessiva formação permanente dos exorcistas; §2 Favorecer os encontros entre os exorcistas, sobretudo a nível nacional e internacional [...]; §3 Favorecer a inserção do ministério do exorcista na dimensão comunitária e na pastoral ordinária da Igreja local; §4 Promover a correta consciência sobre o ministério ao povo de Deus; §5 Promover estudos sobre o exorcismo em seus aspectos dogmáticos, bíblicos, litúrgicos, pastorais e espirituais; §6 Promover a colaboração com estudiosos da medicina e da psiquiatria que sejam competentes também em questões espirituais.
Outro objetivo importante da Associação que vem ganhando destaque, é o combate à difusão de práticas ocultas, consideradas como causadoras principais dos casos de possessão na contemporaneidade, entre estas podemos citar: a busca por cartomantes, astrologia, centros espíritas e até práticas como o Reiki e a Yoga:
Estas práticas abrem caminho à atividade demoníaca extraordinária. Certamente, o número de pessoas que se voltam a essas práticas com graves danos sociais, psicológicos, espirituais e morais, está em constante aumento e isso nos preocupa porque, prontamente, tivemos também um aumento da atividade demoníaca extraordinária, em modo particular vexações, obsessões e sobretudo possessões diabólicas. [...] por outro lado, assistimos a contínua proliferação de mensagens midiáticas, livros, programas televisivos, programas cinematográficos, que, de algum modo, na esteira do sensacionalismo e do espetáculo, incentivam, sobretudo, as novas gerações, a ocuparem-se do ocultismo, do satanismo e, às vezes, a praticá-lo.
O hedonismo, a vaidade, a pressa, o individualismo, a secularização, elementos que, segundo Baumann (2018)36, são indícios da “modernidade líquida”, para a Associação e para o Sumo Pontífice seriam as causas da influência do Diabo na contemporaneidade:
[...] a vexação, por meio da qual muitas pessoas são ‘feridas pelo demônio na saúde, nos bens, no trabalho, na vida afetiva’. Na obsessão, por sua vez, o demônio produz pensamentos repetitivos e destrutivos, deixando a pessoa ‘num continuo estado de prostração, de desespero, de tentação de suicídio’. As possessões são a forma mais intensa – mas igualmente a mais rara – de ataque, no qual ‘o demônio toma posse de um corpo [...] fazendo-o agir ou falar como ele quer, não podendo a vítima resistir e não sendo moralmente responsável por isso’. Há ainda um quarto tipo, a infestação, quando a ação demoníaca se estende sobre as casas, os objetos, os animais, lembrando-nos o popular fenômeno do poltergeist.
Esse discurso ganha força no Pontificado do Papa Francisco que, desde 2013, chama atenção em suas homilias para a existência de Satanás e para a necessidade de combatê-lo. Neste sentido, a própria aprovação jurídica da função dos exorcistas pode ser pensada como uma das primeiras ações efetivas de Francisco na luta contra o demônio, bandeira principal do seu Papado. Idealizado como um papa progressista, carismático e sensível às questões sociais, o discurso conservador de Francisco passa despercebido. A própria regulamentação da Associação coloca em questão a função do
exorcista na sociedade e a redefinição de conceitos como possessão, exorcismo e, em um contexto maior, a ressignificação das representações sobre o Diabo:
O diabo é o pai da mentira. Muitas vezes, ele esconde as suas insídias por detrás da aparência da sofisticação, do fascínio de ser «moderno», de ser “como todos os outros”. Distrai-nos com a vista de prazeres efémeros e passatempos superficiais. Desta forma, desperdiçamos os dons recebidos de Deus, entretendo-nos com apetrechos fúteis; gastamos o nosso dinheiro em jogos de azar e na bebida; fechamo-nos em nós mesmos.
Segundo o padre Francesco Bamonte, o ministério do exorcismo e da liberação tem como objetivo “‘acompanhar com unidade, fé e caridade’ estas pessoas ‘necessitadas de uma atenção espiritual e pastoral específica” e, em 2014 a Associação já contava com cerca de 250 exorcistas credenciados em 30 países. Hoje, em 2018, são mais de 400.
O aumento do número de exorcistas é, no entanto, pequeno em relação ao aumento exponencial de casos de possessão na atualidade, o que, segundo o padre Bamonte, configura o trabalho dos exorcistas como uma “urgência pastoral”. Esta visão sobre os novos apóstolos de Cristo, no entanto, é relativamente recente. A década de 1970 marca uma reação de parte do Clero intelectual que negava a existência real do Diabo, considerando-o mais como um “símbolo funcional no interior da mensagem evangélica”, como assinala do padre Manuel Fraijó.41 Nesse mesmo contexto, entretanto, o Concílio Vaticano II (1862-1865) reafirmou que o demônio não pode ser considerado somente um símbolo, mas uma “realidade” do mal.
A partir de uma análise das Homilias e Mensagens Cotidianas proferidas por Francisco e das publicações feitas na última década pela Associação, nos jornais oficiais do Vaticano (Osservatore Romano e Radio Vaticana), avento como hipótese inicial, que na contemporaneidade, o Diabo ganha uma nova representação: a internet, ou melhor dito, esta mídia encarna o próprio Diabo porque difunde práticas ocultas levando a uma desmaterialização do sagrado, uma ênfase no desencantamento do mundo no sentido proposto por Max Weber: “um mundo cada vez mais intelectualizado e artificial, que abandona para sempre os aspectos mágicos e intuitivos do pensamento e da existência”.
Embora, paradoxalmente, seja hoje um dos principais veículos de divulgação do trabalho dos exorcistas, bem como, do próprio Papa Francisco, é possível perceber que, de forma geral, a internet é constantemente apresentada como o grande vetor de corrupção da alma humana, uma janela perigosa, pela qual, as vexações e tentações entram, podendo inclusive abrir espaço para a possessão demoníaca, justificando assim, a prática das orações de libertação e do exorcismo.
Entender as relações estabelecidas entre a política papal no contexto das transformações tecnológicas nos serve para pensar as estratégias de controle empreendidas pela Igreja para manutenção do seu poder no século XXI, bem como, para refletir sobre as apropriações históricas feitas por esta diante da emergência dos novos
deuses americanos (a mídia, a internet, a globalização) ou poderíamos dizer, do surgimento de um Satã high tech.
A transformação da imagem de Satanás na contemporaneidade, ou ao menos, a sensação da presença de um mal iminente exige um posicionamento pastoral, inclusive quando se trata de dizer quem é ele. Historicamente, a Igreja se sustenta mais sobre o poder do inimigo do que de Deus.
Novos esquemas de representação social são forjados a partir de uma imagem antiga que reforça a cosmologia dual e maniqueísta do mundo. Diante dos novos desafios que o novo milênio traz, a Igreja busca através do domínio da tecnologia, reinserir os jovens cooptados pelos prazeres mundanos. O Diabo, agora, não possui somente os corpos humanos, ele também é virtual, mascarado em bits e bytes tenta convencer o homem do século XXI de que não existe.
Francisco, por sua vez, afirma em uma de suas meditações quotidianas de abril de 201445: “O diabo existe, ainda no século XXI”. O investimento da mídia católica na figura do Diabo, agora em versão pixel e seu reforço como inimigo da Igreja, produz novos medos e gera novas estratégias de controle, como a reafirmação da necessidade do exorcismo e das práticas de liberação.
Os jovens são, neste contexto, o principal público alvo, da mídia-diabo e da ciber-Igreja. É notável que ainda em outubro de 2018, tenha sido realizado um Sínodo com bispos e cardeais de diversos países e um grupo de estudantes europeus, cujo tema central foi a presença física e virtual dos jovens na Igreja.
Trazendo questões como o sexo antes do casamento, gênero, sexualidade, pobreza e migração, o evento se destacou pela inclusão da sigla LGBT no Instrumentum Laboris do Sínodo, (documento que apresenta os resultados das discussões feitas) e pela sugestão de realização de um Concílio Pontifício para os Jovens, cujo leitmotiv seria a expressão: “Bulimia dos meios, anorexia dos fins, info-obesidade e os desafios na era digital”, estando entre eles, a “perda da cultura da oralidade” em proveito de uma cultura midiática, tomada aqui no sentido da burla e da falsidade, assim diz Francisco:
A variedade de opiniões sendo transmitidas pode ser vista como boa, mas também pode levar as pessoas a se entrincheirarem atrás de suas fontes de informação, que vão apenas confirmar seus desejos e ideias ou interesses políticos e econômicos.
Como ressalta Malena Contrera, os jovens de hoje “são mais conservadores do que os de 30 ou 40 anos atrás, e em alguns momentos, nota-se também um avanço do mais atrasado moralismo, sem que este esteja fundamentado em prática ou crença religiosa”.
III. CONCLUSÃO
Na contemporaneidade o Diabo veste Prada e outras máscaras e “encarna o espírito de ruptura em confronto com todas as forças – religiosas, políticas e sociais –que tentaram incessantemente produzir a unidade no Velho Continente”. Em seu papel de divisor, a internet aparece como veículo perfeito de atuação, no entanto, mais que um instrumento, ela encarna o próprio Diabo: um espaço líquido, fluido, que seduz jovens de todas as idades com previsões sobre o futuro, promessas e anonimato.
IV. BIBLIOGRAFIA
CONTRERA. Malena; BAITELLO JR., Norval. A dissolução do Outro na comunicação contemporânea. Matries, São Paulo-Brasil. Ano 4, n. 1, jul.dez/2010. p. 102.
SBARDELOTTO, Moisés. Religião pública: desdobramentos da midiatização da religião na cultura digital. Tear Online. São Leopoldo, v. 3, n. 1, jan/jun. 2014.
Verbete “Diabo” In NASCENTE, Antenor. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1955, p. 156.
ELIAS, Norbert apud MUCHEMBLED, op. cit., p. 14.
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. São Paulo: Hucitec, 1999.
MUCHEMBLED, Robert. Uma história do Diabo – séculos XIX-XX. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2001, p.43.
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CERTEAU, Michel de. The possession at Loudun. 2ª ed. Trad. Michael B. Smith. Chicago: The University of Chicago Press, 2000, p. 35-51. Karol Wojtyla, nome de batismo de João Paulo II, teve um dos mais longos papados da História, ocupando o trono de São Pedro entre 16 de outubro de 1978 e 2 de abril de 2005.
BAUMAN, Zygmunt. Nascidos em tempos líquidos. Rio de Janeiro, Zahar, 2018.
SARTIN, Philippe. A igreja católica, a possessão demoníaca e o exorcismo: velhos e novos desafios. Temporalidades – Revista de História, ISSN 1984-6150, Edição 21, V.8, n.2 (maio/agosto 2016). p. 459.
MIKLOS, Jorge. A construção dos vínculos religiosos na cibercultura: a ciber-religião. São Paulo, PUC, 2010. (Tese de Doutorado).
MUCHEMBLED, op. cit. p.8
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