Demonologia
I. Introdução
De todos os assuntos da Teologia, a demonologia é um dos mais polêmicos e difíceis de lidar. Negligenciada por alguns e supervalorizada por outros, ela tem dividi- do a Igreja de Cristo, gerando embates e dissensões que só atrapalham o avanço do Reino de Deus. Assim como Júlio Cesar tinha por estratégia “dividir para conquistar”, Satanás parece operar da mesma maneira, dividindo e gerando desentendimento na Igreja a fim de manter o povo de Deus longe de sua Missão.
A análise missiológica sobre cura e expulsão de demônios e a sua correlação com a evangelização sadia. Também é resultado da prática de evangelização e aconselhamento de pessoas sob opressão demoníaca no Brasil e em outras nações da Ásia. A pesquisa e o tempo de experiência não me tornaram especialista do assunto, apenas um aprendiz um pouco mais consciente. Se há alguém especialista nesta área, esta pessoa é Jesus.
Evidentemente que este livro não visa responder todas as questões referentes ao assunto, até mesmo porque há muito mais informações ocultas do que reveladas, e nosso intento é estudar as reveladas. Afinal, as coisas reveladas pertencem ao homem, e as ocultas a Deus (Dt 29.29).
II. DESENVOLVIMENTO
1. DEMONOLOGIA PARA O SÉCULO XXI
Para muitos cristãos do século XXI, o diabo não existe. Falar de demônios para estes é o mesmo que falar de fadas. A Bíblia estaria errada ao narrar a interação de Satanás no livro de Jó. Para eles Jesus era um filho de seu tempo, ignorante, enganado com a tola ideia de que alguém pudesse ser possuído por um espírito maligno, quando na verdade as pessoas sofriam de patologias psiquiátricas que a ciência moderna teria desmistificado.
No cerne desta questão está a cosmovisão ocidental, (Quando me refiro à “Cosmovisão Ocidental”, faço distinção entre ela e as cosmovisões que não foram diretamente influenciadas pela formação filosófica do ocidente. A cosmovisão ocidental foi intensamente influenciada pela filosofia greco-romana, o renascimento, a reforma protestante e o iluminismo) que deixou de ver a Bíblia como fonte de autoridade máxima, enxergando os milagres como impossibilidades lógicas, interpretando a realidade pelas lentes da ciência. Enquanto os ateus declaram que a Bíblia não é a Palavra de Deus (até por que para estes Ele não existe), alguns cristãos começaram a tratá-la como um livro que apenas contém a Palavra de Deus, mas que não é na sua integralidade divinamente inspirada. Para estes cristãos, tornou- -se fácil rejeitar porções inteiras das Escrituras que seriam estranhas à sua cosmovisão. Já aqueles que preferiram se entrincheirar na defesa da inspiração divina das Escrituras, tiveram
que aprender a lidar com as argumentações e descobertas da ciência, mas ainda assim sofrendo considerável influência por parte desta cosmovisão.
Arraigada no pensamento teológico, esta mentalidade vem de uma influência filosófica. Teólogos como Schleiermacher, Eichhorn, Bauer e Bultmann ajudaram a moldar esta Teologia, influenciados por pensadores como David Hume, Immanuel Kant e Hegel2. Para esses, falar de anjos, demônios e milagres tornou-se algo incompatível com o homem moderno3. O mecanicismo de Descartes, o evolucionismo histórico de Hegel e o anti-sobrenaturalismo de Hume formaram o pano de fundo para a formação da Teologia que invadiu inúmeros recantos teológicos a partir do século XIX, e que até hoje se encontra em inúmeras igrejas.
As mudanças que o Iluminismo trouxe para o pensamento filosófico e teológico, o sentimento anticlerical, a instabilidade política europeia e o surgimento de novas descobertas no campo da biologia, física e astronomia, foram algumas das novidades que caracterizaram o início do século XIX, levantando questões que demandaram respostas da Teologia de seu tempo4. O Iluminismo enraizara-se no pensamento moderno por meio de diversos filósofos dos séculos anteriores, como David Hume (1711-1776), que atacou frontalmente a realidade de milagres em seu livro “Investigação acerca do entendimento humano”, instigando as pessoas a queimarem qualquer livro que tivesse conteúdo religioso:
Quando percorremos as bibliotecas, persuadi- dos destes princípios, que destruição deveríamos fazer? Se examinarmos, por exemplo, um volume de teologia ou de metafísica escolástica e indagarmos: contém algum raciocínio abstrato acerca da quantidade ou número? Não. Contém algum raciocínio experimental a respeito das questões de fato e de existência? Não. Portanto, lançai-o ao fogo, pois não contém senão sofismas e ilusões.
Influenciado por Hume, Immanuel Kant (1724- 1804) lançou as bases do agnosticismo6, atribuindo à Bíblia apenas valor moral, negando a possiblidade de se conhecer verdadeiramente Deus, ou mesmo a alma7. Seu anti-sobrenaturalismo influenciou diversos pensadores posteriores8. Hegel (1770-1831), que contagiou a Teologia com sua dialética evolucionista aplicada à história, retratou Jesus como um ignorante e obscurantista9. Para ele os milagres eram interpretações contextuais de pessoas restritas à sua realidade cultural e histórica. Todos estes princípios filosóficos influenciaram certos teólogos, como Schleiermacher, Eichhorn, Bauer e Rudolph Bultmann.
Bultmann (1884-1976) buscou desmistificar a Bíblia, pois afirmava que a cosmovisão das Escrituras, que fala de anjos, demônios, milagres e visões apocalípticas se tornaram incompatíveis com o homem moderno. Wegner, que foi nitidamente influenciado por Bultmann e Hegel, propõe, por exemplo, que Jesus não conhecia as explicações científicas para as enfermidades e distúrbios psiquiátricos, pois acreditava na existência de demônios. Ele ainda levanta uma hipótese, de que talvez Jesus conhecesse as causas psiquiátricas, e que não acreditava na existência de demônios. Afirma que provavelmente Ele tratava as pessoas como endemoninhadas, sabendo que na verdade estavam psiquicamente enfermas. Em vez de Jesus explicar os distúrbios psíquicos, sabendo que não seria entendido, realizava terapia utilizando jargões de exorcismo de sua época. Wegner insinua haver erro na narrativa bíblica, além de ignorância em Jesus.
Este é o espírito cético e anti-sobrenaturalista que invadiu as igrejas e missões em todo o mundo nos séculos XIX e XX. Essa Teologia se vê como
evoluída, moderna, avaliando a cosmovisão bíblica como primitiva e enaltecendo as explicações racionalistas da filosofia e da ciência.
Neste ponto é importante destacar que este livro leva em consideração que a Bíblia é a Palavra de Deus, e que não apenas contém a sua Palavra. Afinal, “toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção e para a instrução na justiça, para que o homem de Deus seja apto e plenamente preparado para toda boa obra” (2 Tm 3.16). Negar as Escrituras está no cerne das ideias geradas pelos pensadores citados anterior- mente, no entanto, não é este o caminho que pegaremos.
2. O PARADIGMA DA COSMOVISÃO
Paul Hiebert, respeitado antropólogo e missionário cristão do século XX, escreveu um artigo intitulado: “A Falha do Meio Excluído”,14 onde afirma haver um “ponto cego” na cosmovisão cristã do Ocidente. Ele alega que a mentalidade ocidental foi influenciada pela filosofia platônica e cartesiana que separa o mundo físico do espiritual, ignorando a dimensão existente entre os dois, intitulando-o de “meio excluído”. Esta “cegueira” faz com que muitos missionários ocidentais rejeitem aspectos da dimensão espiritual, tornando-se, na verdade, uma “força de secularização”, que ao invés de reivindicar o poder de Cristo em situações de interação com o reino das trevas, opta por negar a existência de demônios.
Hiebert foi missionário na Índia e lá se deparou com questões relacionadas a espíritos, fantasmas e alma dos animais, pensando que eram assuntos mitológicos, fruto da imaginação popular. Com o tempo compreendeu que a sua postura era parte de sua própria cegueira cultural, produzida por sua cosmovisão ocidental, resultado de uma filosofia platônica e cartesiana. Nessa sua percepção, disse ele, de um lado ficava a dimensão do mundo físico, regida pela ciência e do outro a espiritual, regida pela religião. Foi então que enxergou o meio excluído, uma dimensão entre as duas, negligenciada por missionários ocidentais.
Deve ser evidente porque muitos missionários treinados no Ocidente não tinham respostas para os problemas do meio excluído – eles normalmente nem sequer o viam. Quando as pessoas tribais falavam do medo de espíritos malignos, eles negavam a existência dos espíritos, em vez de reivindicar o poder de Cristo sobre eles (HIEBERT,1982, p. 44).
Hiebert alerta para o perigo de se interpretar o mundo espiritual através da lente de sua própria cultura, seja esta naturalista, tribal ou indo-europeia. Contudo, parece que Hiebert também enxerga as culturas e a cosmo- visão bíblica através de sua própria lente cultural. Ainda que ele admita haver um vácuo na cosmovisão naturalista, sua solução ainda soa cartesiana e ocidental. Ele pode não mais separar a realidade de forma dicotômica, estando de um lado o mundo físico e do outro o espiritual, mas agora o faz de maneira tricotômica, inserindo o conceito do “meio excluído”. Sua solução soa ainda mais cartesiana, pois divide a realidade no maior número de partes possíveis. O próprio fato de usar o termo “sobrenatural” em seu texto, em contraposição ao “natural” já é prova de que possui uma cosmovisão cartesiana e que continua a separar o natural do espiritual.
Alguns estudiosos têm chamado a atenção para a falha que a cosmovisão cartesiana oferece, propondo um novo paradigma, como faz o filósofo Fritjof Capra. Ele propõe que tudo no mundo é conectado: a política, a economia, a
biologia, a física e a psicologia. Toda a realidade faz parte de um único sistema, não sendo possível decifrar as partes sem levar em conta o todo.
Vivemos hoje num mundo globalmente interliga- do, no qual os fenômenos biológicos, psicológicos, sociais e ambientais são todos interdependentes. Para descrever esse mundo apropriadamente, necessitamos de uma perspectiva ecológica que a visão de mundo cartesiana não nos oferece. Precisamos, pois, de um novo ‘paradigma’ – uma nova visão da realidade, uma mudança fundamental em nossos pensamentos, percepções e valores.
Talvez este paradigma proposto por Capra seja mais coerente com a cosmovisão bíblica20. Afinal, as Escrituras parecem realmente enxergar os acontecimentos ali narra- dos como se tudo estivesse interligado. Mundo natural e espiritual se sobrepõem inúmeras vezes, tornando a tarefa de separar os dois, algo praticamente impossível de fazer. A Bíblia parece não diferenciar o que pertence ao campo da física, biologia, religião ou política. Tudo é sempre tratado como espiritual.
Uma cosmovisão que compartimentaliza a realidade, como a cartesiana, tende a separar o que pertence ao campo da medicina daquilo que compete ao campo da física ou da religião. Para estes, se algo possui uma explicação científica, obviamente não terá uma espiritual. Para uma cosmovisão holística, pelo contrário, tudo pode ter uma explicação espiritual ao mesmo tempo em que tem uma científica.
A cultura de um povo é subdividida em diversas camadas, onde a mais profunda é o que chamamos de cosmovisão. Ela é o coração da cultura, responsável por sistematizar e interpretar a realidade física e espiritual do mundo23. Ou seja, a cosmovisão forma a cultura, e vice- -versa. Possivelmente seja aqui onde reside o grande problema da hermenêutica realizada por cristãos, teólogos e missionários do século XXI, que estão inseridos em uma cultura cuja cosmovisão é tão distante daquela dos personagens bíblicos.
Lemos a Bíblia com a lente de nossa própria cultura, e dificilmente conseguimos sequer perceber que estamos utilizando tal lente. Não conseguimos (ou não queremos), fazer o esforço de nos transportar para a cultura do povo cuja história é relatada na Bíblia, valendo-se da lente que eles utilizavam. Ainda assim, se o fazemos, é apenas para conhecer em termos cognitivos a maneira como pensavam e criam, com a finalidade de analisá-los, mas nunca assimilando sua cosmovisão. Normalmente a cosmovisão cristã ocidental ignora, ou racionaliza textos bíblicos, onde aparecem personagens angelicais, demoníacos, ou eventos sobrenaturais. Como ela não consegue encontrar dados empíricos que justifiquem a crença na oração, tampouco na existência de anjos e demônios, ela não consegue crer. O que ocorre é a sobreposição da cultura do leitor sobre a “atrasada” cultura presente na Bíblia.
Bruce Nicholls ajuda a lançar luz sobre a questão quando introduz o conceito de supracultura, que é constituída por elementos que estão acima de toda e qualquer cultura humana:
Ao usarmos o termo “supracultural”, referimo-nos a fenômenos culturais relacionados a crenças e comportamentos que têm origem fora da cultura humana. Realidades de âmbito espiritual, como Deus e seu reino e Satanás e seu reino, são suposições aceitas pelos escritores bíblicos. Argumentos apologéticos em defesa da existência de Deus e de Satanás podem, na melhor das hipóteses, confirmar mais do que comprovar sua realidade. Em última análise, a crença na supracultura é um passo de fé (Hb 11.6)24.
Definir a cultura bíblica como supracultural exige fé. Um cristão verdadeiro precisa valer-se dos óculos bíblicos para ler a Bíblia, deixando de lado seus pré-conceitos derivados de sua própria cosmovisão. A fé é o elemento fundamental do cristianismo e também abrange crer na mesma cosmovisão que Jesus e os apóstolos tinham.
Nicholls salienta que uma das fontes na formação das culturas é a demoníaca, pois “o mundo inteiro jaz no Maligno”. O mundo não é um sistema fechado e formado, diz ele, mas sim a “arena de uma batalha entre o reino de Deus e o reino de Satanás”. A vitória decisiva deste embate cósmico foi conquistada na cruz, mas ainda está em processo de concretização na história e na cultura humana.
3. O PARADIGMA DA EPISTEMOLOGIA
Epistemologia é “o estudo do conhecimento humano ou de como a mente alcança e usa o conhecimento a fim de determinar a verdade”. Como definimos o que é ou não verdade depende da nossa epistemologia. Por exemplo, dizer que demônios existem é considerado falso por aqueles que usam a ciência como única fonte epistemológica. Afirmar que anjos e demônios existem é verdadeiro para aqueles que têm a Bíblia como fonte epistemológica principal.
Existem várias fontes epistemológicas influenciando a Igreja do século XXI, e que afetam diretamente a Teologia atual (e ainda mais intensamente a demonologia). São as diferentes fontes epistemológicas que têm gerado tanta discordância quanto à demonologia. Para um melhor entendimento da questão, vamos fazer um rápido estudo da epistemologia cristã protestante.
A epistemologia da Reforma foi gerada no calor do Humanismo e do Renascimento, onde os reformadores se voltaram às fontes originais bíblicas, destacando o princípio da Sola Scriptura. A Bíblia tornou-se a única fonte epistemológica infalível, deixando para trás toda e qual- quer doutrina que não fosse encontrada nela29. Maia coloca muito bem a questão:
A Palavra de Deus oferece-nos o escopo de nosso pensar e agir. Através dela poderemos ter real visão de Deus, de nós mesmos e do mundo. Portanto, uma cosmovisão reformada é uma visão que se esforça por interpretar a chamada realidade pela ótica das Escrituras. Sem as Escrituras permanecemos míopes para distinguir as particularidades do real, tendo uma epistemologia desfocada.
Esta é a epistemologia que moldou a teologia protestante, pois enfatiza a centralidade e infalibilidade bíblica. Não significa que a Sola Scriptura tenha sido elaborada com a intenção de rejeitar tudo o que não estivesse nas Escrituras, mas de simplesmente assumir que apenas o que está na Bíblia é infalível. Lutero e Calvino indiscutivelmente tinham em alta consideração outras fontes, como os credos: Apostólico, de Nicéia e de Calcedônia.
Com o advento do pentecostalismo uma nova epistemologia parece ter surgido. Certo empirismo teológico, onde a experiência espiritual também passou a ser enfatizada. Mas não se trata tão somente de uma experiência qualquer, pois agora, segundo a doutrina pentecostal, surge o próprio Espírito Santo falando através de profecias, línguas estranhas, interpretações de línguas, sonhos, visões e outros tipos de manifestações espirituais. Não vou entrar no mérito da questão pentecostal aqui, mas o fato é que o pentecostalismo inseriu outra fonte epistemológica para o cristão além da Bíblia: a experiência espiritual.
Embora haja grupos anteriores que também ressaltavam a experiência espiritual quase da mesma maneira, como os “quacres”, que compreendiam a voz do Espírito no coração do cristão como fonte de luz interior, foi no pentecostalismo que esta epistemologia parece ter se estabelecido. O teólogo pentecostal Stanley Horton chega a acusar as outras teologias, conservadora e liberal, de serem racionalistas:
Infelizmente os ocidentais, tanto os conservadores quanto os liberais, sustentam uma epistemologia primariamente racional, inadequada para os pentecostais. O mundo da Bíblia não é aquele do racionalista, pois aquele reconhece o sobrenatural e as experiências sobre- naturais outorgadas por Deus.
Horton afirma que o pentecostalismo sempre se esforçou para manter o equilíbrio entre as fontes bíblicas e a experiência religiosa, manifestada em meio aos dons e revelações pessoais. Assim, é implícita a dupla epistemologia pentecostal, racionalista (Bíblia como fonte racional), e empirista (Espírito como fonte experiencial).
Na teologia pentecostal, a cura física é tida como par- te integrante da salvação, onde o ser humano talvez seja
visto de maneira mais holística. Para eles, o termo “salvação (soteria) refere-se tanto à salvação quanto à cura”. É neste contexto que entra a expulsão de demônios, que é vista como um tipo de cura física, portanto, também parte da salvação. Veja o que Horton diz a respeito da cura:
Dizer que Isaías 53.5 e 1 Pedro 2.24 falam exclusivamente de cura espiritual ou da salvação da alma, e não de cura física, é estabelecer uma dicotomia estranha entre as dimensões espiritual e física da existência humana, dicotomia esta que as Escrituras não justificam.
Quem sabe seja por causa dessa compreensão, que a cura divina tenha tido tanta importância nas campanhas evangelísticas pentecostais. Cruzadas de cura que atraíam multidões e evangelistas invadindo o rádio e a tele- visão foram características típicas, a partir do advento da chamada segunda onda pentecostal (1950-1977). Foi a partir da segunda onda que parece ter crescido também o interesse pelo tema da batalha espiritual, gerando uma busca frenética pelo assunto. Rudy Girón, missiólogo pentecostal, chama a atenção a este respeito:
Em anos relativamente recentes, outros autores, especialmente escritores não pentecostais, têm se familiarizado com os assuntos de batalha espiritual ou têm experimentado um despertar espiritual em seus ministérios. Intrigados por suas experiências, esses autores têm iniciado um trabalho teórico e então escrevem sobre batalhas espirituais. Fazendo uso da psicologia, antropologia, sociologia e algumas experiências práticas em suas pesquisas, estão adquirindo novo conhecimento e teorias acerca da batalha espiritual. Para os pentecostais tradicionais, muitas destas revelações mais novas são bastante comuns. Ao mesmo tempo, alguns deles chegam a ser exagerados. Nós, pentecostais, estamos impressionados com o quanto estes praticantes espirituais mais novos estão habilitados a ‘teorizar’ acerca daquilo que temos praticado por décadas! Até recentemente, pentecostais tradicionais jamais tinham demonstrado interesse, oportunidade ou pretensão de escrever sobre suas próprias experiências. Isto não significa que não entendam do assunto. Mas, pelo contrário, sabem através da experiência o que significa a batalha espiritual contra as forças das trevas e também acerca da libertação sobrenatural através do poder de Deus em nosso mundo e ministério.
O alerta é pertinente, pois ao mesmo tempo em que enfatiza a importância do tema, também deixa claro que muitas pessoas estão exagerando. Autores como C. Peter Wagner e T.L. Osborn fazem parte deste grupo de escritores que sistematizaram os temas de batalha espiritual e cura divina, e que influenciaram as igrejas chamadas neopentecostais. Osborn, por exemplo, ensina que Deus deseja curar todos, e que o crente não precisa mais ficar enfermo. Além disso, ensina que toda doença é causada por demônios, possuindo uma “vida maligna”. Ele pro- nuncia:
Os médicos podem dizer que é artrite, mas a verdadeira causa é um espírito que prende. Os médicos poderiam dizer que se trata de cordas vocais não desenvolvidas e nervos do ouvido mortos, mas o verdadeiro problema é um espírito surdo e mudo que se deve expelir em nome de Jesus. Os especialistas podem dizer que é glaucoma ou catarata, mas Jesus disse que era um demônio cego.
As igrejas da terceira onda, chamadas de neopentecostais, motivadas por autores como Osborn, Peter Wagner e Charles Kraft, colocaram a expulsão de demônios bem no centro da pregação, substituindo as ênfases reformada e pentecostal do passado. É deste grupo que surge a terceira fonte epistemológica que é necessária destacar aqui.
Vários debates calorosos têm ocorrido, onde, de um lado, os chamados adeptos da batalha espiritual são acusados de se corromperem com doutrinas animistas. Do outro, asseguram que o problema real é a cosmovisão naturalista ocidental dos seus acusadores, que os métodos daqueles são ineficazes49.
Esses teólogos, Wagner e Kraft principalmente, foram influenciados por aspectos da antropologia missionária, bem como do pentecostalismo, ainda que não sejam provenientes de igrejas pentecostais. O debate a respeito do assunto tem levantado tópicos polêmicos, com pouquíssimo consenso.
A maior polêmica por trás desta nova teologia é a sua epistemologia. Priest, Campbell e Mullen51 acusam Charles Kraft e Peter Wagner de fundamentarem suas teorias em informações retiradas de entrevistas feitas com demônios. Segundo eles, muitas de suas doutrinas receberam fundamentação destas entrevistas.
Charles Kraft confirma, asseverando que realmente entrevista os demônios, e justifica seu procedimento. Segundo ele os demônios são mentirosos, porém, uma pessoa com a autoridade do Espírito Santo pode forçá-los a falar a verdade. O conhecimento adquirido ajudaria na identificação dos pecados que precisam ser abandonados, pois muitas vezes foram esquecidos pela pessoa. Kraft defende a eficácia do método apontando para as centenas de pessoas que ajudou a libertar.
O assunto referente à entrevista a demônios será tratado em outro capítulo, mas por enquanto basta esclarecer que esta é a prática deste grupo, e que apresenta uma nova epistemologia, obviamente perigosa, diferenciando-se da que é utilizada por todas as outras igrejas. Para os conservadores a fonte epistemológica é apenas a Bíblia (Sola Scriptura). Para os pentecostais, além da Bíblia, teria a experiência com o Espírito Santo. Agora, para os adeptos desta nova teologia, inclui-se a fonte demoníaca.
A partir desta terceira fonte epistemológica surge uma série de ensinos perigosos dentro das igrejas. Ensinos animistas, transmitidos pelos demônios em entrevistas feitas em processos de libertação. Falaremos mais tarde sobre isso.
As igrejas que sofreram influência desta teologia passaram a colocar o tema da batalha espiritual no cerne de sua cosmovisão. Se fosse a batalha espiritual revelada na Bíblia, não teria problema, mas estas igrejas passaram a misturar ensinamentos bíblicos com os informados por demônios.
Este é o caso de algumas denominações, que passaram a enxergar o espiritismo e as religiões afro-brasileiras como inimigas. Esta “guerra santa” deixou de ser apenas contra principados e potestades, passando também a ser contra religiões e instituições, agredidas de diversas maneiras, como no episódio do “chute na santa”.
Os exageros que estas igrejas passaram a praticar se encaixam exatamente naquele alerta feito por Hiebert, onde o cristianismo se torna uma nova forma de magia. Uma das mais importantes igrejas influenciadas por esta teologia no Brasil, usa diversos elementos do paganismo para controlar o mundo repleto de demônios, onde a própria liderança da igreja assume certo papel mediúnico. A mistura de elementos mágicos, como o sal grosso, a oração em dias e lugares específicos, o uso certo das palavras, o poder associado ao indivíduo, evidenciam o sincretismo diabólico gerado no meio destas igrejas. Talvez o mais coe- rente fosse chamar, não mais de neopentecostalismo, mas sim de neopaganismo cristão, pois estas se distanciaram consideravelmente do cristianismo bíblico.
III. CONCLUSÃO
Lidar com a questão demonológica na Igreja do século XXI é lidar com extremos. Há crentes que não creem na existência de demônios, e crentes que veem demônios em tudo. Alguns ignoram a batalha espiritual, e outros a entronizaram na igreja. Talvez uma postura seja consequência da outra, embora não podemos saber, senão apenas especular.
Devemos destacar o fato de que a fonte epistemológica está intimamente ligada à cosmovisão do indivíduo. Se, como cristãos, desejamos ter a cosmovisão bíblica, precisamos então utilizar a mesma epistemologia bíblica. As mesmas fontes epistemológicas utilizadas por Jesus e os apóstolos, e que ajudam a moldar a cosmovisão bíblica, devem também moldar a nossa.
Conciliar a realidade natural com a espiritual parece ser tão paradigmático para a teologia, quanto harmonizar predestinação com livre arbítrio. Ou ainda explicar a Trindade, onde o Pai se relaciona com o Filho em seu ministério aqui na Terra, ao mesmo tempo em que os dois são a mesma pessoa. Quem negar que este é um dos conceitos teológicos mais complexos de se entender é porque provavelmente está simplificando demais a questão. Da mesma forma, definir onde começa o mundo físico e termina o espiritual parece ser uma tarefa tão impossível quanto definir o próprio Deus. Por muito tempo a Igreja tem se dividido nesses assuntos, separando calvinistas de arminianos, tradicionais de pentecostais, que se polarizam em matérias difíceis de encontrar consenso, a não ser pela fé. Talvez a Demonologia seja um desses assuntos, e que requer humildade de ambos os lados.
O ponto de concordância entre os diferentes grupos é a meta missionária, que visa levar o evangelho para todo o mundo. Se as igrejas, denominações e agências missionárias pudessem discutir os temas complexos relativos à expulsão de demônios, sem presunção teológica ou cultural, talvez assim
houvesse crescimento. Afinal, uma das artimanhas de Satanás é jogar uns contra os outros, de maneira que a Igreja não consiga enfrentá-lo como convém.
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