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domingo, 1 de maio de 2022

HOMÍLIA DO DOMINGO do 3o DA PÁSCOA

(branco, glória, creio – 3a semana do saltério) I. Introdução

Aclamai a Deus, toda a terra, cantai a glória de seu nome, rendei-lhe glória e

     louvor, aleluia! (Sl 65,1s).

 Em comunhão com a Igreja celeste, somos reunidos pelo Espírito em torno do Cordeiro imolado, que vive para sempre.

A ele glorifiquemos e demos graças, pois nos alimenta com a Palavra proclamada e o Pão partilhado.

Desafiados a responder à pergunta “vocês me amam?”, queremos nos dispor a seguir o Senhor como testemunhas da ressurreição.

 II. Comentário

Segundo os estudiosos, o capítulo 21 do Evangelho de João é um acréscimo posterior. Não podemos tomar este texto (e outros) como uma crônica

 jornalística.

O autor quer informar sobre a experiência que os apóstolos fizeram do Ressuscitado. O texto de hoje é claramente dividido em duas partes: a pesca abundante e a missão de Pedro.

O relato da pesca pode demonstrar a crise que a comunidade está passando: pesca infrutífera numa noite.

Com o amanhecer de um novo dia (alusão à nova realidade a partir da ressurreição de Jesus), os apóstolos descobrem a presença de Jesus e, a seu

 mando, conseguem grande pesca. Sem a presença do Ressuscitado, a missão da Igreja pode estar destinada ao fracasso.

O fruto da missão depende da presença e da adesão à palavra de Jesus, que

 os convida a jogar a rede. Como para os discípulos, para nós também nem sempre é fácil perceber a nova realidade da presença do Ressuscitado.


 III. Atualização

 • A partir da percepção da sua presença, nossa vida terá sentido e nossa

 missão dará resultados.

• Para conhecer e seguir fielmente o Mestre e conduzir a comunidade, é indispensável o amor.

• A pergunta a Pedro – você me ama? – hoje é dirigida a cada um de nós. O

 amor é o que nos identifica como cristãos.



 

terça-feira, 1 de junho de 2021

O QUE É POSITIVISMO

João Ribeiro Júnior

 O QUE É POSITIVISMO

Editora brasiliense

76 NOTÍCIA BIOBIBLIOGRÁFICA

Antes de dar uma visão de conjunto dos aspectos fundamentais do pensamento positivista, apresento, rapidamente esboçada, a biobibliografia do fundador do positivismo, Isidare-Auguste-Marie-Xavier Comte, para melhor se compreender a revolução que ele presumia fazer. Filho de uma família pequeno-burguesa, católica e monarquista, nasceu Augusto Comte em Montpellier em 19 de janeiro de 1798, e faleceu a 5 de setembro de 1857, em Paris. Estudou no Liceu de sua cidade natal e na Escola Politécnica de Paris, onde foi admitido antes da idade legal, sendo mais tarde expulso com alguns companheiros de curso por suas idéias ultrademocráticas. A ela voltará como examinador de admissão.

Freqüenta alguns cursos da Faculdade de Medicina, e torna-se amigo e secretário do socialista Saint-Simon, que exerce grande influência sobre sua formação intelectual. Após seis anos de convívio, afasta-se bruscamente do mestre. Em 1825, vivendo de lições particulares dê matemática, casa-se com Caroline Massin, da qual irá separar-se dezessete anos depois. Em 1845, conhece Clotilde de Vaux, sua musa inspiradora, que morreria no ano seguinte, e com quem manteve um intenso relacionamento amoroso, embora platônico. Ocorre, nessa época, seu rompimento com o filósofo Stuart MiII, que o auxiliava financeiramente. Passa, então, a ser mantido por uma subscrição periódica, graças à intervenção de seu discípulo Littré. É a partir da morte de Clotilde que Comte atribui-se um papel messiânico: supunha realizar uma missão de regeneração da humanidade. Comte dizia que foi Clotilde quem lhe deu forças para iniciar e acabar a segunda parte de sua obra e lhe fez ver a importância social dos sentimentos sobre a teoria e a práxis. Em 1847, é proclamada a religião da humanidade.

 As obras capitais, em que Comte desenvolve larga e metodicamente o seu pensamento, são Curso de Filosofia Positiva, em seis volumes (1830-1 1842), Discurso preliminar sobre o espírito positivo (1844) e Sistema de política positiva ou tratado de ( p. 9) sociologia instituindo a religião da humanidade, em quatro volumes (1851-1854). Enquanto nas duas primeiras obras Comte estabelece a coordenação científica de sua filosofia, com o objetivo de "descobrir e demonstrar as leis do progresso", no Sistema ele desenvolve e tira as conseqüências das leis sociais estabelecidas no Curso e no Discurso, e erige o sistema político-religioso destinado a reformar a sociedade. . 

O conjunto de suas concepções filosóficas é produto direto de sua época. Augusto Comte procurou acabar com as eternas investigações sobre o incognoscível, e, voltando-se para o mundo real) criou nele seu vasto campo de estudo e de observação para restabelecer e realizar um programa universal, que regulamentasse e regenerasse a vida humana, tanto privada como pública. Influenciado pelo progresso contínuo das ciências, Comte concebeu para a filosofia um novo papel, ao mesmo tempo que um novo objeto, a par de uma ampla crítica do conhecimento, diversa das concepções dominantes até ele, quer fosse o ontologismo de Aristóteles, ou dos pensadores medievais, ou o racionalismo dos modernos, de todos os sistemas, enfim, que davam como possível o conhecimento do absoluto pela razão humana. Doutrinava, assim, que o que é possível conhecer são unicamente os fenômenos e as suas rela- (p. 10) ções, não a sua essência, as suas causas íntimas, quer eficientes quer finais. Estas permanecem impenetráveis, desconhecidas, pois é impossível alcançar-se noções absolutas.

 Toda sua obra é, portanto, uma síntese geral dos conhecimentos de seu tempo, cujo programa fundamental era unificar as duas culturas - a humanística e a científica - num nbvd humanismo, fundado na ciência; uma ciência capaz de redescobrir e reavaliar a exigência humana, conferindo-lhe um significado de valor universal. Humanidade, ciência, síntese e fé constituem a essência do pensamento comtiano. Daí a força atrativa do positivismo que ainda perdura como concepção filosófica, especialmente no que respeita à crítica do conhecimento. 

PENSAMENTO LIBERAL E POSITIVISMO O século XIX marca não só o triunfo do liberalismo europeu, ligado ao direito natural, que considera a natureza humana como base da própria lei natural, cuja única realidade é a liberdade do homem; marca também o triunfo do cientificismo, que reconhece uma só natureza material, que engloba e explica o mundo dos valores e o mundo dos fatos. O liberalismo afirmava que o desenvolvimento moral, cultural, econômico e político da sociedade só seria alcançado pelo livre desenvolvimento do espírito e das faculdades do indivíduo. Assim, o valor da personalidade era considerado anterior a todas as condições históricas, políticas, sociais e culturais, impondo a priori o imperativo categórico do respeito à liberdade e à igualdade inata nos indivíduos. (p.12) Essa filosofia, fundada na crença da personalidade soberana e ilimitada do indivíduo, precedendo o Estado, era um credo revolucionário que não tolerava nenhum acordo quando um direito fundamental fosse transgredido. Sua teoria era institucional. Contudo, o liberalismo começou a sofrer transformação, nUma tentativa de conciliar sua estrutura racional apriorística com o empirismo, que ensinava que todo o conhecimento se reduz aos dados da experiência sensível, e com o materialismo, 

segundo o qual a matéria e suas leis são tudo o que existe ou a explicação de tudo, no encontro de fundamentos da filosofia científica que se esboçava. A pouco e pouco, a tendência da ciência e do pensamento político-social centra-se no empirismo e reduz a autoridade do racionalismo, que sustentava a primazia da razão, da capacidade de pensar, em relação ao sentimento e à vontade. É pois na contestação ao racionalismo abstrato dos adeptos do liberalismo que surgem os defensores do cientificismo, seduzidos pelo progresso contínuo, propondo que os fatos só são conhecidos pela experiência e que a única válida é a dos sentidos. A partir daí, verifica-se uma reconciliação da natureza e da história, e o romantismo filosófico tenta encontrar um equilíbrio em sua postura perante a ciência, disciplinando os estados de espírito existentes na época em uma severidade crítica, para as- (P. 13) sentar um sistema de noções sobre o homem e sobre as sociedades. E, assim, recriar os fundamentos de um empirismo experimentalista no estilo de Bacon e Galileu, aceitando o cetismo deste, apenas para as realidades metafísicas e teológicas. 

Passa então o positivismo a dominar o pensamento típico do século XIX, como método e como doutrina. Como método, embasado na certeza rigorosa dos fatos de experiência como fundamento da construção teórica; como doutrina, apresentando-se. como revelação da própria ciência, ou seja, não apenas regra por meio da qual a ciência chega a descobrir e prever (isto é, saber para prever e agir), mas conteúdo natural de ordem geral que ela mostra junto com os fatos particulares, como caráter universal da realidade, como significado geral da mecânica e da dinâmica do universo. As instituições do Estado Liberal, como o sufrágio universal, o sistema de partidos políticos, a divisão dos poderes do Estado, as liberdades públicas, as garantias individuais, assim como o próprio conceito de democracia, passam a ser reavaliados criticamente, procurando-se dar-lhe novos conteúdos. Em todos os domínios, cuidava-se de não procurar o porquê das coisas, de não indagar-lhes a essência.

 A palavra de ordem era desprezar a inacessível determinação das causas, dando preferência à procura das leis, isto é, das relações constantes (P.14) que existem entre os fenômenos. Substituía-s o método a priori pelo método a posteriori. Em suma, observa-se por toda parte o mecanismo d mundo, ao invés de inventá-lo. As leis naturais, assim descobertas, constituem a formulação geral de 'Um fato particular, rigorosa mente observado; e daí resulta que a ciência, seguindo Comte, não é mais do que a sistematização do bom senso, que acaba por nos convencer de que somos simples espectadores dos fenômenos exteriores, independentes de nós, e que não pode mos modificar a ação destes sobre nós, senão sub metendo-nos às leis que os regem. Assim, opondo-se à concepção do direito natural e do pacto social e às doutrinas teológicas Augusto Comte preconiza o emprego de novos métodos no exame científico dos problemas sociais substituindo as interpretações metafísicas e estabelecendo a autoridade e a ordem pública contra os abusos do individualismo da Escola Liberal. As fontes mais diretas utilizadas por Augusto Comte para estabelecer as bases de sua filosofia foram as doutrinas sociais de Saint-Simon, combinadas com os trabalhos de ideólogos, notadamente de Cabanis e dos naturalistas Gall, Bichat e Broussais. O método de investigação para a determinação dos fatos e suas relações, ele foi buscar nos filósofos ingleses: Bacon, Hume e outros. Propondo que os fatos (P. 14) só são conhecidos pela experiência, e que a única válida é a dos sentidos, Comte prossegue a tradição sensualista que vinha desde Leucipo, Demócrito e Epicuro, passando por Locke e Condillac, modificada por Taine. De modo que, para se reformar a sociedade faz-se mister antes de tudo descobrir as leis que regem os fatos sociais, cuidando-se de afastar as concepções abstratas e as especulações metafísicas, que são estéreis, segundo Comte.

 É, pois, no desenvolvimento das ciências naturais que se encontra o caminho a seguir. Pela observação e pela experimentação se irá descobrir as soluções permanentes que ligam os fatos, cuja importância é básica na reforma econômica, política e social da sociedade. O positivismo é, portanto, uma filosofia determinista que professa, de um lado, o experimentalismo sistemático e, de outro, considera anticientífico todo estudo das causas finais. Assim, admite que o espírito humano é capaz de atingir verdades positivas ou da ordem experimental, mas não resolve as questões metafísicas, não verificadas pela observação e pela experiência. Como sistema filosófico, busca estabelecer a máxima unidade na explicação de todos os fenômenos universais, estudados sem preocupação alguma das noções metafísicas, consideradas inacessíveis,(P.16) e pelo emprego exclusivo do método empírico, ou da verificação experimental. Dessa forma, não se pronuncia, ao menos em teoria, não só acerca de qualquer substância cuja existência não possa ser submetida à experiência, como também sobre as causas íntimas e as origens últimas das coisas, nem a respeito de sua finalidade. Donde se conclui que o método positivo não assinala à ciência mais do que o estudo dos fatos e suas relações, fatos esses somente percebidos pelos sentidos exteriores. Por isso, pode-se dizer que o positivismo é um dogmatismo físico e um ceticismo metafísico. É um dogmatismo físico, pois que afirma a objetividade do mundo físico; e é um ceticismo metafísico, porque não quer pronunciar-se acerca da existência da natureza dos objetivos metafísicos. 

OS FUNDAMENTOS DO POSITIVISMO

Augusto Comte usa o termo filosofia na acepção geral que lhe davam os antigos filósofos, particularmente Aristóteles, como definição do sistema geral do conhecimento humano; e o termo positiva designa, segundo ele o real frente ao quimérico, o útil frente ao inútil, o certo frente ao incerto, o preciso frente ao vago, o relativo frente ao absoluto, o orgânico frente ao inorgânico, e o simpático frente à intolerância. Seu método de trabalho é o histórico genético indutivo, ou seja, observação dos fatos, adivinhando-lhes por indução as leis da coexistência e da sucessão, e deduzindo dessas leis, por via da conseqüência e correlação, fatos novos que escaparam da observação direta, mas que a experiência verificou. (P.18) Este método é o método geral de raciocínio proveniente do concurso de todos os métodos particulares (dedução, indução, observação, experiência, nomenclatura, comparação, analogia, filiação histórica) que constitui, segundo Comte, o método objetivo. Mas, Comte usa também o que chama de método subjetivo, que resulta da combinação lógica dos sentimentos, das imagens e dos sinais. Para fundamentar sua corrente filosófica antimetafísica, Augusto Comte, embasado nesse método, parte da premissa de que é no estado positivo que o espírito humano reconhece a impossibilidade de obter noções absolutas. Assim, renuncia a indagar a origem e o destino do universo e a conhecer as causas intimas dos fenômenos, para se consagrar unicamente a descobrir, pelo uso combinado do raciocínio e da observação, as suas leis efetivas, isto é, as suas relações invariáveis de sucessão e de semelhança. 

Destarte, como reação ao idealismo, a doutrina comtiana oferece uma parte geral e uma especial. Na geral, ocorrem a teoria dos três estados mentais e a classificação hierárquica dos conhecimentos humanos. No desenvolvimento do espírito humano, Comte admite uma lei fundamental que recebe o nome de lei dos três estados, ou modo de pensar, que é a base de sua explicação da História: o estado teológico-fictício,(P. 19) que tem diferentes fases (fetichismo, politeísmo e monoteísmo) e em que o espírito humano explica os fenômenos por meio de vontades transcendentes ou agentes sobrenaturais; o estado metafísico-abstrato, onde os fenômenos são explicados por meio de forças ou entidades ocultas e abstratas, como o princípio vital etc.; e o estado positivo-científico, no qual se explicam os fenômenos, subordinando-os às leis experimentalmente demonstradas. Todas as ciências, segundo Comte, passaram pelos dois primeiros estados, e só se constituíram quando chegaram ao terceiro. O Estado Positivo é, pois, o termo fixo e definitivo em que o espírito humano descansa e encontra a ciência. As sociedades evoluem segundo essa lei, e os indivíduos, em outro plano, também realizam a mesma evolução. Partindo do princípio de que o objeto da ciência é só o positivo, isto é, o que pode estar sujeito ao método da observação e da experimentação, Augusto Comte só reconhece as ciências experimentais ou positivas, que tratam dos fatos e das suas leis. Distingue, assim, as ciências abstratas das concretas. As ciências abstratas, que são fundamentais, formam seis grupos e, dispostas na sua ordem hierárquica, são as seguintes: matemática, astronomia, física, química, biologia e sociologia. As concretas, como a mineralogia, a botânica, a zoologia, segundo Comte, não estão ainda constituídas e, por isso, ele não as classifica. 

A classificação das ciências abstratas baseia-se na ordem lógica e cronológica das ciências. Na ordem lógica, porquanto é próprio da inteligência passa,r do mais simples e abstrato para o mais completo e concreto, conforme a regra da síntese proposta por Descartes. Ora, nesta classificação, a primeira ciência, que é a matemática, é mais simples e abstrata que a segunda, a astronomia, e assim por diante na ordem cronológica, porque a primeira ciência que se constituiu, segundo Conte, foi matemática, depois a astronomia, em seguida a física, a química, a biologia e, por último, a sociologia. Mais tarde, Comte acrescentará a moral para coroar essa classificação. Para esta classificação, Comte teve seus reais ascendentes históricos em Condorcet, que traçara o quadro do progresso do espírito humano, e em Turgot, que entrevira a lei dos três estados. Na parte especial, a doutrina positivista pode ser considerada sob quatro aspectos. 

Aspecto psicológico: para Comte, a psicologia faz parte da biologia. Posteriormente, Comte destacará a psicologia da biologia, denominando-a moral teórica. Assim, renovando a teoria de Gall e Bichat, segundo as explicações científicas de Broussais, ele reputa a alma (espírito) (P. 22) como um conjunto de funções cerebrais. Aspecto ontológico: Comte nega as causas eficientes e finais, o infinito e o absoluto, para reconhecer apenas o relativo, o sensível, o fenomenal, o útil. "Tudo é relativo, e isso é a única coisa absoluta" é o axioma fundamental do positivismo. Reduz, assim, toda causalidade a meras relações de simultaneidade e sucessão. E os aspectos sociológico e religioso, que partem desde a divisão dos poderes sociais em material, intelectual e moral, exercidos por uma elite, isto é, os dirigentes. (O Positivismo não aceita as classes com o significado geralmente empregado na atualidade. Aceita sim, que em toda a sociedade, desde a mais primitiva, há dirigentes e dirigidos. Os dirigentes devem sempre ser os mais capazes, isto é, aqueles que influem na educação e na cultura da espécie humana: são os sacerdotes, os filósofos, os cientistas, os jornalistas, os professores etc., ou melhor, os teóricos que modificam o pensamento dos indivíduos através de sua pregação e de sua conduta moral.) Embasado na concepção biológica da sociologia, Augusto Comte entende a sociedade como um organismo cujas partes constitutivas são heterogêneas, mas solidárias, pois se orientam para a conservação do conjunto.

 Assim, à semelhança do organismo, encontra-se nela uma divisão das funções especiais, onde se nota a presença da espontaneidade, da necessidade, da imanência e da subordinação de todas as suas partes a um poder central e superior. (P.23) Segundo Comte, a sociedade possui um ritmo evolutivo incompatível com a revolução violenta. Deste modo, concebe-a sempre em termos harmônicos. Para ele, a sociedade reflete os diversos estados da vida de um homem; dessa forma, uma vez que os organismos não podem mudar bruscamente, senão através de uma evolução paulatina, também a sociedade está sujeita a esta norma de evolução. Partindo da idéia de que a natureza humana evolui segundo as leis históricas, embora em si mesma não ocorra nenhuma transformação, isto é, existe uma base perene no homem frente ao elemento cambiante da sociedade, Comte divide o estudo da estrutura social em dois campos principais: o estudo da ordem social, que ele denomina de estática social, e o estudo da evolução da sociedade, que recebe o nome de dinâmica social. Enquanto a estática estuda o consenso (solidariedade) ou o organismo social em suas relações com as condições de existência, traçando a teoria da ordem, a dinâmica parte do conjunto para as particularidades, e determina o progresso geral da humanidade. Comte olha para o progresso social como condicionado pelos concomitantes biológicos dos indivíduos, de tal forma que nenhuma estrutura social é possível sem que esteja previamente determinada nos fatores biológicos, aliás irredutíveis como o são todas as categorias de fenômenos na concepção comtiana. (P.24) O progresso da sociedade é caracterizado, assim, pela incessante especialização das funções, como todo o desenvolvimento orgânico, para maior aperfeiçoamento na evolução dos órgãos particulares. 

Desta forma, excluindo toda intervenção apriorística de noções abstratas e idéias universais, que caracterizavam as ciências sociais da época, o positivismo, "como regime definitivo da razão humana frente à ação dissolvente da metafísica" surgiu do progressismo, baseado no desenvolvimento científico que dominou todo o século XIX, como o objetivo de aproveitar as virtudes do progresso, ou da evolução progressiva, pela compreensão racional e científica do problema da ordem, determinando os elementos fundamentais de toda a sociedade humana. E, nesta inovação, aplica o método indutivo das ciências naturais às ciências sociais para repudiar o romantismo do liberalismo laissez-faire, em favor do planejamento social. Como doutrina e método, o positivismo passa a enfrentar a sociedade individualista e liberal, através da ordem e do progresso, que Comte considerava fonte principal de todo sistema político. É nesta linha de raciocínio que Augusto Comte, partindo da noção de solidariedade que, em sua opinião, impera na sociedade, apresenta uma política de paz e amor, substituindo a idéia sobrenatural do Direito pela idéia natural do Dever. 9p. 25) A política positiva não reconhece nenhum direito além do de cumprir o dever, e, assim, nega categoricamente a própria existência do direito como tal. O termo ciência política, usado por Saint-Simon, praticamente tem o mesmo significado que Comte deu à sociologia. Aliás, ele emprega como expressões equivalentes "política positiva", "filosofia social", "teoria da evolução social", "ciência social", ''física social", "sociologia". Para Comte, sociologia é a ciência abstrata que estuda os fenômenos dos agrupamentos sociais. A ciência política é a aplicação prática da sociologia, estudando casos particulares, tendo porém sempre em mira o ponto de vista moral. A política é a arte de bem aplicar os conhecimentos abstratos da sociologia (saber para prever, a fim de prover). Seja como for, ciência política, para Comte, é a que diz respeito à história do Estado e/ou à teoria e prática de sua organização. Segundo Comte, a noção de direito deveria desaparecer do domínio político, como a noção de causa do domínio filosófico, porque ambas se referem a vontades indiscutíveis.

 Ele entende que o positivismo não admite senão deveres de todos para com todos; pois que seu ponto de vista, sempre social, não pode comportar nenhuma noção de direito, constantemente fundada na individualidade. 9p. 26) O homem como individualidade não existe portanto, na sociedade científica, senão como membro de outros grupos, desde o familiar - unidade básica por excelência - até o político. Também aí não há lugar para a liberdade de consciência. A consciência, para Comte, não determina sozinha o modo de existência prática, como não bastam as condições materiais da vida para definir a consciência. E a própria soberania popular é um termo vazio de sentido em sua política positiva, onde a ditadura se exercita num despotismo espiritual e temporal, pois adota o princípio da força como fundamento do governo. Mas, o que realmente caracteriza a política de Augusto Comte é a sua preocupação de se orientar pela moral, que nasce da fraternidade universal. Assim, em última instância, o que decide se uma resolução e/ou decisão deve ser tomada para o bem público é saber se ela está de acordo com essa moral. 

A moral comtiana se funda no império do instinto, que nos inclina para os outros, e que se chama altruísmo (termo criado por Comte). O homem tem instintos egoístas e altruístas. Se os primeiros são necessários, não o são menos os segundos, porquanto a humanidade só pode viver em sociedade, e esta só progride, de acordo com Comte, pelo sacrifício e pela dedicação; de modo que a lei da existência da humanidade, para ele, é, uma lei que se resume na fórmula "Viver para outrem". Por isso a moralidade consiste na preponderância dos instintos altruístas sobre os egoístas; preponderância que resulta fatalmente da educação e da ciência. 

Os positivistas Littré, Spencer e Stuart Mill aceitam essa moral, mas diferem quanto ao modo por que explicam a formação do altruísmo. A escola positivista francesa se baseia na fisiologia para descobrir, em nosso organismo, a origem e a lei da evolução do altruísmo; a inglesa funda-se na psicologia e no darwinismo, procurando demonstrar a evolução psicológica dos nossos sentimentos, de egoístas em altruístas, sob influência do meio social. Para ambas, porém, a moral é relativa e variável, pois relativas e variáveis são as tendências e as evoluções do organismo. 

A RELIGIÃO DA HUMANIDADE

No desenvolvimento de sua doutrina, Comte se volta para o estudo da humanidade como o Grande Ser (Ie Grand Étre) que abrange a totalidade histórica, para apreender seu valor concreto. O Grande Ser é "o motor imediato de cada existência individual ou coletiva", que inspira a fórmula máxima do positivismo: "O Amor por princípios, e a Ordem por base; o Progresso por fim". Esclarece Miguel Lemos que essa fórmula era redigida de maneira diversa (e ainda hoje citada erroneamente): "O Amor por princípio, a Ordem por base e o Progresso por fim". Comte modificou a redação, ligando o segundo membro ao primeiro pela conjunção, e separando o terceiro por ponto e vírgula. A fim de melhor guiar a vida real, esta fórmula universal do positivismo se decompõe em duas divisas usuais (p. 29) - uma moral e estética: "Viver para outrem", ou seja, ubordinar o indivíduo à família, esta à pátria e a pátria à humanidade; e outra política e científica: "Ordem e Progresso", isto é, organização, cada coisa em seu devido lugar para perfeita orientação ética da vida social. Na dialética positivista, o amor procura a ordem e a impele para o progresso; a ordem consolida o amor e dirige o progresso; o progresso desenvolve a ordem e reconduz o amor. Desta inspiração altruísta criou Augusto Comte sua religião, puramente natural, racional, científica e exclusivamente humana, que não admite mistérios, revelação, vontade sobrenatural e que não aceita nenhuma crença, cuja exatidão a sua razão não lhe tenha podido demonstrar. 

A religião positivista, portanto, baseando-se no conhecimento do mundo, pretende concorrer para o aperfeiçoamento moral, intelectual e prático da humanidade. Humanidade que se compõe dos mortos, que adquiriram a vida subjetiva; dos vivos, que se esforçam por adquiri-Ia; e dos não-nascidos, que se supõe devam adquiri-Ia. É assim, integrada por um tríptico - o passado, o presente e o futuro - e constituída de uma trindade - a humanidade que trabalhou, que trabalha e que trabalhará. A humanidade - o Grande Ser -, para Augusto Comte, é muito mais do que uma simples abstração, (p. 30) de forma vazia e inerte, é uma realidade, pois representa a comunhão de todos os homens em uma contínua solidariedade no tempo e no espaço. A solidariedade com a continuidade é a condição fundamental da existência e do desenvolvimento da humanidade. É, pois, na humanidade que o homem irá satisfazer sua necessidade real de um Deus, e seu desejo de imortalidade. Seu destino moral será servir, acima de tudo, ao Grande Ser, a humanidade. Comte concilia, assim, o fetichismo com o positivismo, o Estado teológico-fictício com o Estado positivo-científico, para explicar o Grande Ser, pois entende que é só no fetichismo individual ou coletivo, onde há uma expansão ingênua do sentimento, que se realiza a verdadeira identificação entre o homem e a humanidade. Deste modo, tenta assegurara plenitude da unidade religiosa. Embora Augusto Comte, contrário à teologia e à metafísica, que considerava meras construções ilusórias, pregasse que o catolicismo era anti-social e que seria irrevogavelmente eliminado pelo positivismo, ele não esconde suas propensões simpáticas por esta religião, pois se lhe apresentava como a obra-prima da hierarquia e da compreensão das necessidades espirituais do homem. Assim, tomou a como modelo, mas lhe negou o direito de pretender conduzir a humanidade. É assim que vemos no positivismo, como no catolicismo, a veneração de "santos padroeiros", isto é, (p. 31) os sábios do passado, os grandes religiosos, os heróis ilustres, cuja recordação e exemplo são sempre exaltados; a veneração de almas que são "particularmente próximas", como a mãe, as irmãs, as filhas, que Comte chama de "anjos da guarda". O positivista religioso sente-se, assim, rodeado de "almas amadas", algumas simplesmente protetoras, outras amantes e auxiliares. É a "comunhão dos santos" positivista. Em torno desses "santos padroeiros", de "anjos da guarda"; de "almas amigas", que são uma parte do Grande Ser, a religião da humanidade reservou um lugar à sua padroeira suprema, para a mulher-tipo, para a "intercessora privilegiada entre os homens e a humanidade divinizada": Clotilde de Vaux, a Virgem-Mãe. Destarte, Clotilde - que não era virgem e nem se tornou mãe - passou a concretizar a figura perfeita da humanidade. . No positivismo, portanto, a humanidade, filha dos homens, que nasceram eles próprios dela, representa exatamente a Virgem-Mãe, que é personificada pela figura de Clotilde de Vaux. Para o positivismo a humanidade é formada só de homens. Quanto à mulher, Comte julgou-a condenada à inferioridade pelas leis irrevogáveis da natureza. Estava tão convencido da superioridade do homem, que julgava que o marido deveria alimentar a esposa. E ele mesmo (p. 32) assim o fez, depois de separar-se de Carolina Massin, apesar de considerá-la indigna e de não dispor de recursos suficientes para sustentá-la. Contudo, embora as mulheres sejam excluídas da humanidade divinizada, não são excluídas da sociedade positivista. Elas não participam da sua atividade, porém cada uma é a inspiradora de cada um dos seus membros. As mulheres, segundo Comte, são o sustentáculo das Providências Sociais, pois seu concurso é indispensável para o advento do positivismo. Elas têm uma "função moderadora" e uma única missão: a de amar. As Providências Sociais, segundo Comte, são o sacerdócio ou a Providência Intelectual, o patriciado ou a Providência Material, e o proletariado ou a Providência Geral. A mulher é a Providência Moral que sustenta todas as demais Providências. Segundo Augusto Comte, a força geral de qualquer sociedade é o proletariado, que forma a opinião pública que se liga à força espiritual do sacerdócio. A classe mais importante no Estado positivista é a dos sacerdotes, que não são teólogos, mas sociólogos. São os intérpretes das doutrinas sócio-religiosas do positivismo, por isso distinguem-se pela coragem, perseverança e prudência.

 No sacerdócio há três estágios: os aspirantes, de pelo menos 28 anos, porque é preciso chegar a essa idade para possuir a cultura enciclopédica (p. 33) exigida por Comte; os vigários ou suplentes, de pelo menos 35 anos, irrevogavelmente incorporados ao sacerdócio, que permanecem nas funções de ensino; e os sacerdotes propriamente ditos, cuja idade não pode ser inferior a 42 anos, os quais são investidos da confiança do sumo sacerdote da humanidade, e penetrados de sua doutrina. Podem preencher, nas famílias e nas cidades, o tríplice ofício de conselheiro, de consagrador e de regulador, que caracteriza socialmente o clero positivista. 

Os sacerdotes não devem possuir qualquer parcela de poder temporal, pois foi a mescla do espiritual com o temporal - segundo Comte - o grande erro da Antigüidade, e a grande contribuição do cristianismo foi separá-lo. Assim, os sacerdotes podem sugerir ações ao braço secular da lei, mas não empreendê-las sob a sua própria responsabilidade e iniciativa. Esta classe é sustentada pela classe ativa, mediante livres subsídios dos crentes positivistas, depois por intermédio do tesouro público, "quando a fé tornar-se unânime". O casamento é obrigatório para eles, pois o sacerdócio, de acordo com Comte, não pode ser dignamente preenchido sem a influência contínua da mulher sobre o homem. O patriciado é a classe detentora do poder temporal. É a classe que possui capacidade industrial em suas diversas subdivisões: banqueiros, comerciantes, fabricantes e agricultores, colocados em escala hierárquica. (p. 34) Assim, nesta sociedade os banqueiros são os que possuem maior autoridade, porém são orientados pelos sacerdotes, a fim de que não fujam de suas responsabilidades sociais. Comte queria com isso garantir a justiça social. 

O patriciado é, assim, composto de empresários, que têm na sociedade positivista o mesmo papel que os papas reservavam à nobreza feudal. O sumo sacerdote da humanidade (papa) delega igualmente ao patriciado a conduta material do mundo sob condição de obediência à direção do sacerdócio. De modo que o cidadão não é livre para julgar o comportamento político-social do patriciado, porém deve confiar plenamente nas exortações morais que os sacerdotes dirigem a esta nobreza nova, que por sua vez se sujeita a uma voluntária submissão à orientação deles. Daí o aspecto central da filosofia comtiana: a substituição dos direitos pelos deveres. Reconhece o próprio Comte que a religião da humanidade propõe um regime severo, demasiado antipático aos espíritos para que possa prevalecer sem o apoio das mulheres e do proletariado. Daí insistir na necessidade do concurso do proletariado para o desenvolvimento do positivismo. Contudo, Comte os coloca no extremo inferior da escala social, em razão de sua "incompetência para decidirem as questões sociais". (p. 35) Quanto ao culto da humanidade, também ele é abstrato e concreto, conforme considere a existência mesma do Grande Ser: o agente de sua evolução. Assim, há dois tipos característicos de culto na religião positiva, endereçados, sobretudo, à mulher e à humanidade: o culto privado, que se compõe de duas partes distintas: uma pessoal e outra doméstica; e o público, realizado na igreja positivista. Toda oração - quer privada quer pública - é no positivismo uma verdadeira obra de arte, pois é a originalidade poética que Augusto Comte propõe para as orações da religião da humanidade. Mas, é, sobretudo, da prática assídua do culto privado que se há de distinguir os verdadeiros positivistas. Há nove sacramentos na religião da humanidade: Apresentação, quando a família apresenta solenemente o recém-nascido que ela vota ao serviço do Grande Ser; Iniciação, quando a criança, com 14 anos, passa da educação materna à instrução sacerdotal; Admissão, aos 21 anos, que o autoriza a servir livremente à humanidade, da qual até então ele tudo recebeu sem lhe retribuir nada. O quarto sacramento social, que vem aos 28 anos, "salvo pedido ou prescrição de adiamento", é a Destinação, quando os sacerdotes outorgam a cada indivíduo a investidura do seu ofício especial. O sacramento do Casamento é o seguinte, e é obrigatório, pois o positivismo condena o celibato, (p. 36) ao mesmo tempo que declara a indissolubilidade do casamento, mesmo que morra um dos cônjuges, o que mostra que a viuvez é eterna, para,ele. Os dois outros sacramentos são: a Maturidade e o Retiro. O primeiro quando, aos 42 anos, o homem entra em plena posse das suas forças físicas e mentais. O sacerdócio lhe concede 21 anos para realizar o seu destino. Expirado esse tempo, o homem terá percorrido na terra nove estágios de sete anos cada um. Terá então 63 anos. O sacerdócio elimina-lo-á da humanidade ativa, e lhe dará o direito ao repouso, pelo sacramento do Retiro.

 Há ainda a Transformação, que é uma espécie de extrema-unção, uma purificação e um viático, que . tem por fim facilitar a Incorporação, que é a recompensa do fiel positivista. A Incorporação, na humanidade, é composta somente de "mortos dignos de sobreviver". Esta possibilidade de sobreviver é submetida pelo sacerdócio a um exame que dura sete anos. Quatro anos após a morte do positivista é dada uma decisão preparatória, que permite prejulgar da decisão final. Passado um novo prazo de três anos, durante os quais o inquérito termina, o sacerdócio dá a sua decisão irrevogável. Se é favorável, o clero procede à translação solene dos restos mortais do positivista, do cemitério ordinário ao "bosque sagrado", que deve rodear cada Templo da Humanidade. (p. 37) Esses sacramentos, contudo, são facultativos. Comte, preocupado ainda com a severidade de suas prescrições, propõe que o sacerdócio deverá, sendo preciso, solicitar junto ao governo a instituição das regras legais destinadas a temperar a severidade das prescrições religiosas, cuja observância é livre. Como se vê, o positivismo frente à ciência e à religião não nega nem afirma senão aquilo que é possível negar ou afirmar, isto é, aquilo que cabe debaixo da experiência e da observação. 

Destarte, Augusto Comte irá fazer a síntese da ciência e da religião, construída a partir do conceito de humanidade. A ciência, vinculada às necessidades do homem, fornece os meios para se chegar à religião, que assegura a realização de seus fins. Em outros termos, Comte, encontrando na humanidade, personificada por Clotilde de Vaux, o objeto de seu culto, apóia-se na religião, que irá realizar sua obra, sem sair contudo do mundo real em que se move a ciência. A religião positivista, portanto, como a ciência positivista, parte do concreto para o concreto, e não do abstrato para o concreto, para fornecer os princípios da regeneração das sociedades. Abraçando ao mesmo tempo a ciência, a filosofia, a política, a religião e a poesia, e desprezando as especulações teológicas e metafísicas incapazes de melhorar a existência humana, pois as regras da felicidade (38) humana são feitas pelo e para o homem, o positivismo, pela noção de humanidade, que sistematiza os fatos sociais, preocupa-se, principalmente e sobretudo, em dispor o homem a "viver para outrem". Não obstante, tanto a ciência como a religião se vêem oprimidas neste' sistema político-religioso. 

A ciência é embaraçada pela religião, e esta é constrangida pela ciência. A religião não é permitida qualquer indagação, cuja utilidade social não seja evidente, não lhe sendo permitido que ultrapasse os limites da vida prática: nada de metafísica. Lateralmente, a ciência deve sujeitar-se ao sentimento, à subjetividade; porquanto o importante para Comte é estabelecer o valor moral da ciência, a fim de demonstrar a relação lógica existente entre ela e a religião. O culto à humanidade, instituído por Augusto Comte, não se confunde com aquele que os católicos dirigem a Deus. Nem era possível, já que ele declara que não há provas da existência de Deus, e que a humanidade é um ente real e demonstrável. Mas podemos qualificar esta doutrina de atéia e materialista? O dogma essencial do positivismo pode ser formulado da seguinte maneira: há coisas que o homem pode conhecer, e há outras que jamais conhecerá. O que é possível conhecer são unicamente os fenômenos e as suas relações, não a sua essência, (p. 39) as suas causas íntimas, quer eficientes, quer finais. E impossível alcançar noções absolutas, pois "tudo é relativo". 

E não é por um raciocínio mais ou menos bem encadeado que se chega a esta conclusão de que Comte fez um dogma; é pelo método experimental, que estabelece um limite para cada categoria de fenômenos. Há um limite em que os fatos se tornam inacessíveis à experimentação; a partir dele, penetra-se na metafísica, ou melhor, na espiritualidade, onde se movem as idéias de Deus, da alma e da imortalidade. O positivismo não ultrapassa esse limite: põe de parte a questão de Deus como manifestadamente insolúvel, não deixando, contudo, de notar que aqueles que admitem um Ser Supremo devem renunciar à idéia de ver no governo do mundo qualquer coisa que se assemelhe às idéias positivistas de ordem, de justiça e de bondade, pois, para Comte, a moral cósmica, se existe, é diferente da moral humana. Assim, sem se preocupar se existe ou não Deus, com o qual se possam comunicar as almas, inclinando-as a se harmonizarem entre si, para afinal se reunirem Nele, a religião positivista satisfaz à necessidade do homem por um Deus, através de um objeto real e acessível: a humanidade, entendida como a comunhão de todos os homens em uma continuidade e uma solidariedade no tempo. Em suma, o positivismo se preocupou em guardar o conteúdo da moral cristã sobre o amor ao (p. 40) próximo, eliminando a concepção do mundo que lhe serve de base, e construindo sobre ela o altruísmo, como fundamento de todos os deveres particulares. Daí Comte afirmar que "nós não diferimos dos católicos senão em que a nossa unidade se refere à humanidade, ao passo que a deles se refere a Deus" (carta de A. Comte a seu pai). Não há dúvida de que a religião positivista, não renegando os valores espirituais da vida, é sedutora na aparência, com sua máxima cristã "Viver para outrem"; contudo, não nos devemos esquecer dos aspectos reacionários do pensamento de Comte. Assim, a conclusão a que se chega é de que a questão das relações entre a moral e a religião em Comte foi precipitadamente resolvida. Como conciliar o princípio do amor, advindo da moral altruísta "Viver para outrem", com o autoritarismo dogmático e a disciplina despótica da Religião da Humanidade? Na doutrina positivista, como vimos, os deveres para com os outros prevalecem como altruísmo, pois ela concebe a dignidade humana como superioridade moral que se adquire procurando o bem alheio; porém, assim procedendo, ela faz do amor um dever: ordena aos homens amarem-se na humanidade. O que a religião positivista propõe, portanto, não é o devotamento a outros homens - o amar uns aos (p. 41) outros -, mas sim o devotamento a um fim superior a qualquer individualidade: o Grande Ser, a humanidade, entendida como a sucessão das gerações, como uma coleção de individualidade. Embora seu programa consista em formar uma consciência moral e social, que inspire os idealismos humanos, nacionais e sociais contra os impulsos egoístas e superstições retrógradas, não há como negar que a religião da humanidade é triste e tirânica, "severa e árdua" na expressão de Littré, pois os atos da vida são estreitamente regulados e toda liberdade moral severamente reprimida, pois que é incompatível com a ordem social. Mas, como se sabe, Littré foi um dissidente do positivismo; assim, os positivistas ortodoxos entendem, ao contrário, que a Religião da Humanidade não é despótica, pois baseia-se no desenvolvimento da Fraternidade entre todo o gênero humano e somente prevalecera pela livre e fraterna sujeição dos corações e das inteligências. Não existe qualquer autoritarismo pois só poderá ser livremente aceita. No positivismo ortodoxo há necessariamente uma separação entre o poder que aconselha (o sacerdócio) e o poder que dirige a parte material (governo político). Logo, não pode haver despotismo numa religião em que o sacerdócio apenas aconselha e não manda. É uma religião que tem um culto baseado na veneração pelo passado, usando todas as belas artes para embelezar e elevar o ser humano. DO POSITIVISMO AO EVOLUCIONISMO SOCIAL Sistematizando o ideal burguês de repulsa às especulações do romantismo e do idealismo filosófico, a obra comtiana é apreendida e ampliada em seus pontos básicos. Assim, o positivismo é seguido por duas escolas: a francesa, de Littré e Taine, e a inglesa, de Spencer e Stuart Mil!. O pensamento político-social passa a sofrer marcante influência da biologia. Discutese a sociedade em função de analogias biológicas, isto é, a sociedade é comparada, em estrutura e funções,. à vida orgânica. 

A sociedade passa a ser encarada como produto orgânico, e se concebe para o Estado esta mesma natureza, seja como órgão dentro da estrutura social, seja como a estrutura social sob um aspecto particular. (p. 43) É sob a influência dessa visão organicista do Estado, somada ao individualismo liberal predominante em seu tempo, que Herbert Spencer (nascido em 1820 e falecido em 1903) irá lançar as bases do Evolucionismo social, através de suas obras fundamentais: Princípios de sociologia, em três volumes (1853-1896), Primeiros princípios (1860-1862), Estática social (1851) e O Homem contra o Estado (1884). Nas duas primeiras obras, Spencer apresenta detalhada descrição histórica das instituições sociais e os princípios do evolucionismo social. A partir da publicação de Estática social, Spencer começa a advogar o individualismo extremo, que irá florescer plenamente em O Homem contra o Estado. Esta obra representa uma das declarações mais positivistas que já se fizeram sobre a doutrina do laissez-faire extremado. Herbert Spencer é, antes de tudo, um agnóstico. Sua doutrina consiste numa sistemática e voluntária ignorância de tudo o que é sobresensível. Quando verificou que Kant considerava o tempo e o espaço como percepções dos sentidos e não coisas objetivas, classificou-o de idiota. Para explicar seu ponto de vista, Spencer parte do seguinte princípio evolutivo: "A evolução é uma integração de matéria e uma concomitante dissipação de movimento, durante a qual a matéria passa (p. 44) de uma homogeneidade indefinida e incoerente para uma heterogeneidade definida e coerente; e durante a qual o movimento conservado é passível de uma transformação paralela" (Primeiros princípios, Secção 111, § 145). . 

A Evolução spenceriana repousa, assim, em três proposições fundamentais: instabilidade do homogêneo, multiplicação dos efeitos e segregação pelo movimento. Desses postulados seguem outros quatro: persistência das relações entre as forças, ou uniformidade da lei; transformação e equivalência das forças, isto é, que estas não se perdem, mas se transformam; movimento pelo caminho da menor resistência ou de maior atração; e o ritmo alternante do movimento. Deste modo, negando validez à lei dos três estados comtiana, mas aceitando sua teoria da evolução da sociedade, Spencer estabelece que o desenvolvimento de um organismo individual e de um organismo social consiste em um progresso que vai da simplicidade à complexidade, de partes semelhantes independentes a partes dissemelhantes, dependentes mutuamente. . Partindo do estudo das classes, ordens e famílias mais importantes do mundo animal e vegetal, à luz das últimas descobertas realizadas pelos fisiologistas como Harvey, Wolf e von Baer, e remontando aos seres e aos fenômenos superorgânicos, Spencer (p.45) toma o fenômeno social em suas mais tênues concretizações, manifestadas nos primeiros agregados sociais, que se formaram entre os povos históricos, para constatar a existência de uma vida social sem formas definidas, sem divisão de classes, sem divisão de trabalho, havendo apenas, em muitos deles, a diferenciação pelo sexo, sem separação alguma nas funções da vida entre dirigentes e dirigidos. Assim, seguindo ascendentemente a escala dos povos na ordem do tempo e do desenvolvimento até chegar às nações contemporâneas, às sociedades civilizadas, Spencer verifica uma existência social completamente diferenciada pela profunda especialização das funções, uma vida complicada de mil maneiras, dirigida por uma vasta regulamentação, por um sem-número de instituições perfeitamente definidas e coerentes, combinadas todas, embora muito diferentes entre si, para um resultado comum a que todas aspiram, para o resultado da coordenação das ações dos indivíduos e, portanto, para a harmonia da vida em sociedade. Conforme a. lei da evolução, que apresenta . três fases evolutivas - a inorgânica, a orgânica e a superorgânica - os primeiros agregados sociais, segundo Spencer, exprimem um estado social homogêneo, confuso, indefinido, sem coerência, ao passo que, quanto mais se vão desenvolvendo, eles vão passando para um estado cada vez (p. 46) mais heterogêneo, mais definido, mais coerente e mais complexo. Aplicando esse princípio ao desenvolvimento da sociedade em geral, Spencer considera o Estado um órgão integrador e a sociedade, um organismo, sujeitos às mesmas leis dos organismos dos corpos vivos. A sociedade, como um todo, é considerada separadamente de unidades vivas, apresentando, assim, fenômenos de desenvolvimento, estrutura e função análogos aos do crescimento, estrutura e função num animal, e que estas últimas são as chaves necessárias para a primeira: Para Herbert Spencer, são seis as semelhanças fundamentais e três as diferenças mais importantes entre sociedade e organismo animal. Assemelham-se, em primeiro lugar, porque ambos se distinguem da matéria inorgânica por um aumento de massa e um crescimento visível durante uma grande parte da sua existência; segundo, porque ambos aumentam em tamanho, em complexidade e em estrutura; terceiro, porque existe em ambos uma semelhante diferenciação de funções, devido à progressiva diferenciação da estrutura; quarto, porque a evolução estabelece nos organismos animais e sociais diferenças claramente conexas que se tornam reciprocamente possíveis; quinto, porque a analogia entre uma sociedade e um organismo é ainda mais evidente quando se reconhece (p. 47) que todo organismo é, por sua vez, uma sociedade; e sexto, porque, quer na sociedade quer no organismo, a vida do todo pode destruir-se e as unidades continuarem ainda a viver, pelo menos por algum tempo. Por outro lado, eles se diferem porque as partes componentes de um organismo individual formam um todo concreto e as unidades viventes estão ligadas em contato íntimo, enquanto que no organismo social as partes componentes formam um todo discreto e as unidades viventes estão separadas e mais ou menos dispersas. Além disso, e até mais fundamental para Spencer, é que existe uma diferenciação de funções no organismo individual: algumas partes se convertem na sede do sentir e do pensar e outras são praticamente insensíveis, ao passo que no organismo social não existe tal diferenciação. . Finalmente, como resultado desta segunda diferença, observa-se que, enquanto no organismo as unidades existem para o bem do todo, na sociedade o todo existe para o bem dos membros individuais. O Estado, portanto, para Spencer não é somente um organismo, mas um organismo que evolui. De estado militar, autoritário, ele evolui para o estado industrial, civil e liberal, dominado pela lei e não pela arbitrariedade dos governantes. (p. 48 As sociedades militares exigem uma disciplina que implica a obediência cega do indivíduo para o bem da coletividade, enquanto as sociedades industriais se colocam a serviço do indivíduo e de sua liberdade. 

O progresso da civilização, segundo Spencer, não depende exclusivamente da direção dada pelos homens superiores (os sacerdotes-sociólogos de Comte); é, antes, um produto natural do meio social, onde, do debate dos interesses, das idéias presentes, como das tradições do passado, enfim, de um conjunto de múltiplos fatores sociais, corroborados pelas esperanças e pela Gonfiança no esforço individual, resulta a evolução progressiva, pela qual cada personalidade se torna autônoma, concorrendo, ao mesmo tempo, para a perfectibilidade geral de todos e de cada um. E o governo, nesta sociedade, só tem por fim impedir o excesso do egoísmo, pois sua ação deve estar na razão inversa do progresso social. É simples protetor e não promotor de interesses. É um mal necessário que, no futuro, poderá ser eliminado pelo completo desenvolvimento moral dos indivíduos, reduzindo, assim, a proteção governamental a um mínimo e a liberdade individual a um máximo. A natureza humana estará, desta forma, bem disposta para a disciplina social, bem apropriada à vida em (p. 49) sociedade, que não terá mais necessidade de coerção exterior, pois ela mesma se coibirá. Com esta ótica, Herbert Spencer combina a concepção biológica da sociedade com o princípio utilitário da maior felicidade e a doutrina dos direitos naturais, para defesa do individualismo liberal. Aplicando o laissez-faire liberal tanto no domínio sócio-político, como no econômico, Spencer entende que o Estado - que não contém em si mesmo uma personalidade com vida própria, como pensava os idealistas - deve limitar a sua atividade ao cumprimento das funções essenciais, como a defesa contra agressões externas para manter a paz e a ordem, e a prevenção de arbitrariedade contra os indivíduos, proporcionando-Ihes proteção e segurança. Para Spencer, portanto, qualquer expansão da autoridade do Estado representa um obstáculo para a evolução natural e embaraça a diferenciação da estrutura social, que as exigências do progresso impõem. Insurgindo-se contra a preponderância do Estado, Spencer afirma que uma sociedade pode ser julgada na proporção em que o constrangimento exercido sobre os cidadãos, em nome da lei humana, for menor do que a obediência voluntária à lei da igualdade na liberdade. (p. 50) Se a lei moral não tem poder suficiente sobre os homens, o constrangimento a substitui; mas também, quando a lei moral se torna forte, deve desaparecer a coerção; então o governo se torna não só inútil, mas um mal, e os homens sentem tal aversão pelos entraves da autoridade, mostram-se tão ciosos dos seus direitos, que se torna impossível qualquer governo. 

Destarte, como todo organismo que passa da homogeneidade indefinida, confusa e indistinta para a heterogeneidade definida, coordenada e distinta, na sociedade há equilíbrio e interdependência entre suas partes. E quem a governa é uma lei geral da evolução, que não depende da vontade humana, mas é determinada pelas ações externas e pela natureza dos indivíduos, e cujo objetivo é o próprio equilíbrio. Equilíbrio que irá determinar o dever ser da sociedade ideal. Mas, como é necessária uma regra de conduta para o indivíduo vivendo em sociedade, Spencer, alegando que a velha moral, à qual se atribuía uma suposta origem divina, perdeu toda a sua autoridade, porque era demasiado severa e não se acomodava às modernas exigências da humanidade, propõe a moral positivista que, prescindindo de um legislador supremo, fosse mais fácil e indulgente. Uma ética absoluta que representasse a forma limite do progresso da moralidade. (p. 51) Neste intuito, embasado na psicologia e no darwinismo aplicado à moral, Spencer apresenta três princípios, por meio dos quais o homem chega a possuir os sentimentos de moral idade e a idéia do bem e do mal: o princípio do interesse pessoal, o do instinto social e o da hereditariedade. Assim, acompanhando Augusto Comte, quando afirma que a moral se funda no egoísmo e no altruísmo, Spencer entende que do egoísmo nasceu, necessária e fatalmente, o altruísmo, com todas as suas modalidades mais elevadas. Mas o altruísmo não só nasce do egoísmo, como também se robustece com ele, até que o vence ou parece vencer; a vitória do altruísmo é igualmente a do egoísmo, pois, segundo Spencer, o bem da comunidade é o bem de cada indivíduo. O egoísmo e o altruísmo harmonizar-se-ão numa sociedade futura para a qual tendemos, porquanto são co-essenciais, e formarão o ego-altruísmo. 

Do seu perfeito acordo dependerá a felicidade da humanidade ideal, que a humanidade presente, com sua ética relativa, está preparando. Deste modo a moralidade, se tem o seu começo no interesse pessoal, tem o seu complemento no instinto social. O altruísmo representa assim a mais perfeita adaptação dos indivíduos ao ambiente social, em que tudo é solidário. Este sentimento, transmitindo-se por meio das leis de hereditariedade, sob forma (p.52) de modificações orgânicas, irá aperfeiçoar-se cada vez mais, realizando-se, desta forma, o progresso da moralidade pública e individual, que é determinado pelo progresso da adaptação da vida humana às suas leis constitutivas. Como vimos, para Herbert Spencer existem três mundos distintos: o mundo inorgânico (sistema celeste, minerais etc.), o mundo orgânico (vegetais, animais etc.) e o mundo superorgânico (o homem, as sociedades etc.). Dessa forma, a moral, e também o direito, que derivam diretamente da natureza das coisas, pertencem ao "mundo superorgânico" e são governados pela lei universal da evolução. Enquanto Augusto Comte nega a própria existência do direito como tal, Spencer entende que o direito nasce e se desenvolve a partir das propriedades intrínsecas do indivíduo, restabelecendo, assim, a doutrina do direito natural. Para ele, o direito, destinado a organizar as funções da sociedade, segue do começo ao fim uma marcha constante e invariável, no meio de obstáculos, com as diferenças específicas que caracterizam cada povo. Assim, sua idéia de justiça contém dois elementos: um positivo e um negativo. O positivo é o reconhecimento do direito que todo homem tem à sua livre atividade e às vantagens que dela resultam: o negativo é o reconhecimento dos limites impostos (p. 53) pela presença de outros homens, gozando de direitos análogos. Daí a fórmula: "Cada um pode fazer o que quiser, contanto que não lese a liberdade dos outros." * * * Comparando o positivismo com o evolucionismo, em resumo, constatamos serem muitos os pontos de contato entre ambos, especialmente a aspiração à síntese em uma só lei universal. Contudo, enquanto na sociedade de Augusto. Comte o governo é necessário e essencial, porquanto dele dependem o funcionamento e a divisão das funções, cristalizando-se numa ditadura, em seus esforços a uma adequada organização social, que será completada por uma nova religião, na de Herbert Spencer o governo é um mal necessário, mas provisório, cujo papel fica reduzido ao mínimo, aumentando a liberdade e o individualismo; pois o governo não é nada por si mesmo e só representa algo enquanto compreende os indivíduos que o integram. 

Estas teses políticas conflitantes, entretanto, não impedem que a doutrina da evolução social se apresente como doutrina essencialmente positiva, tanto por seu método como por seu conteúdo. (p. 54) Desse modo, quer se adote o ponto de vista de Spencer ou o de Comte, a filosofia permanece como sistema de explicação positiva do universo em oposição a toda uma metafísica. Por isso é que foi possível a alguns ideólogos republicanos brasileiros combinarem Augusto Comte e Herbert Spencer para construírem suas teorias políticas, segundo o puro método científico, sobre o fundamento das realidades da experiência. Em política o que se busca são os resultados. Destarte, se as doutrinas são irreconciliáveis do ponto de vista lógico, na práxis elas podem conduzir a um mesmo resultado. O POSITIVISMO NO BRASIL Olhando para as coisas em conjunto, o movimento positivista, que se pretendeu inovador, impregnou todo o ambiente cultural do século XIX, universalizando a experiência e resolvendo nela toda a realidade. O positivismo vinha de expor de maneira sistematizada a confiança da burguesia em seu próprio impulso transformador de estruturas. Mas, enquanto na Europa o positivismo servia para justificar as novas atitudes da burguesia em sua fé no progresso retilíneo da humanidade, nas Américas se apresenta de maneira diversa d€!quela como era compreendido no continente europeu, trazendo em seu bojo um acentuado caráter político. É assim que no Brasil, galvanizando as aspirações revolucionárias da classe média urbana, assenta suas (p. 56) bases nas cidades e sobretudo nas Academias de Direito, na pretensão de se criar e definir uma nova consciência da realidade nacional, frente à ordem político-social dominante. No Brasil, o liberalismo, como doutrina clássica do individualismo político e econômico com sua ênfase no racionalismo, na lei natural, na igualdade, na liberdade e na democracia, sofria também uma revisão em seus fundamentos. De um lado, apareciam os liberais românticos da escola do direito natural, empenhados em deduzir o Estado e o direito de certa maneira imutável do homem; e de outro, os cientificistas, inspirados nas conquistas das ciências positivas. Porém, as condições econômicas, sociais e políticas não são as mesmas da Europa. Aqui, a expansão da cafeicultura determinou as transformações na sociedade, ensejando que a oligarquia rural alcançasse sua hegemonia sobre o Estado. O Império cumpria sua missão história, mantendo a unidade nacional, assentado num romantismo político, cujo fundamento ideológico vinha das doutrinas políticas do escritor francês Benjamin Constant, o festejado autor de Adolphe. Benjamin Constant era partidário da soberania popular e considerava a vontade geral superior à vontade individual do monarca; contudo, repudiava a autoridade absoluta e ilimitada do povo. Para ele, os ministros (p. 57) constituem o poder executivo, e são responsáveis perante o rei, que representa um poder neutro - o poder moderador, tendo a seu cargo a defesa do equilíbrio governamental. O romantismo - com suas cogitações morais, sua religiosidade, sua interpretação do ser individual, sua visão nacionalista -, coincidindo com o momento decisivo da definição da nossa nacionalidade, traduzia as alterações de uma sociedade em que novos fatores surgiam e velhos fatores mudavam de sentido e força. Para a intelectualidade de então, pertencente à aristocracia dominante, que dava as normas e traçava os rumos, havia uma zona em que a literatura confinava com a política, sem que as separasse uma linha muito nítida. As reflexões sobre o homem e a sociedade traziam, assim, indelevelmente, a marca da visão romântica da vida. A filosofia romântica, negligenciando a diversidade do real, caracterizava-se pelo historicismo e pela atividade criadora do espírito, numa reação contra a filosofia iluminista da razão, impregnando de espiritualismo, ontologismo e idealismo todo o pensamento europeu e, conseqüentemente, por importação, o brasileiro. Entretanto, a vida espiritual do século XIX começava a ser abalada pelo naturalismo cientificista. (p. 58) Neste novo contexto, as velhas instituições já não correspondiam às aspirações do século e a filosofia do romantismo já não satisfazia os espíritos. E o Brasil modernizava-se sob a égide das atividades financeiras. Contudo, na década de 1850, no quadro econômico, iniciava-se a drenagem do ouro das praças brasileiras. A crise externa, com a conversibilidade do metal, irá provocar uma crise interna. Há uma restrição das exportações dos gêneros coloniais e se elevam os preços dos gêneros de primeira necessidade. E os bancos, que haviam imobilizado seus recursos em negócios de ações, não conseguindo enfrentar a nova situaçãp, provocam uma corrida financeira. A retração súbita do crédito, para enfrentar o reembolso das notas do Banco do Brasil, culminará em inúmeras falências. Só no Rio de Janeiro houve . quarenta e nove falências, ascendendo sempre nos anos seguintes. Com essa apropriação da renda nacional pelo exterior a economia nacional irá sofrer forte abalo, que se estenderá além de 1864, quando se repetirá o pânico. Esse quadro era agravado pelo problema da mão-de-obra escassa e pelas epidemias de varíola e de cólera, que flagelavam as províncias. (p. 59) No ambiente político, alternavam-se no poder o Partido Liberal e o Conservador, face ao sistema de governo criado pela Constituição imperial de 1824. Tanto um como outro não tinham nenhuma significação ideológica, caracterizando-se pela ausência de fixações doutrinárias. O Conservador defendia a ordem constitucional vigente, o Liberal, a abolição do poder pessoal e a descentralização, mas aceitavam ambos a concepção liberal do Estado, cujo princípio axiomático era: o mínimo de governo e o máximo dê iniciativa. Como ambos estavam sob o comando da aristocracia rural, que submetia o resto da população ao seu domínio, as divergências políticas entre eles eram atenuadas, pois o que se tinha em vista era assegurar a posição da classe dominante que, promovendo a paz indispensável ao progresso, garantia o conservantismo das instituições. Esse estado de coisas favoreceu a conciliação que durou quase dez anos, coincidindo com o surto econômico, e que visava à acomodação para salvar a unidade e a integridade do país. A nova Câmara se formou, assim, em um ambiente favorável ao entendimento das correntes, contando, inclusive, com o decidido apoio do imperador. Todavia, o povo, que os chefes políticos levavam aos comícios, permanecia indiferente aos sucessos políticos dos dois partidos tradicionais. (p. 60) De qualquer maneira, este período foi o de predomínio do Partido Conservador, que zelava pela manutenção do status quo, através de uma política administrativa de realização em conjunto, evitando a prática da oposição. A mentalidade conservadora convertia, assim, todos os problemas políticos em questões administrativas, o que lhe assegurava um completo monopólio em matéria de decisões Vive-se sob a égide do romantismo. Do triunfo do indivíduo, da liberdade, do lirismo e da melancolia. Do protesto do Sentimento contra a supremacia da Razão. Exalta-se o indivíduo livre, a comunidade orgânica local e nacional e os impulsos do coração. E enquanto o "eu" romântico mergulha na evasão, incapaz de resolver seus conflitos com a sociedade, os créditos se arrocham e os metais continuam a emigrar para o exterior, aumentando as falências; e, por outro lado, liberais e conservadores se articulam na disputa pura do poder numa política não sintonizada com a realidade nacional. 

É neste contexto que a oligarquia rural, através do processo político, irá tentar estruturar um sistema de relações sociais que lhe permitirá impor ao conjunto da sociedade um modo de produção próprio, ou pelo menos, tentar estabelecer alianças ou subordinar os demais grupos ou classes com o fim (p. 61) de desenvolver uma forma econômica compatível com seus interesses e objetivos. Coincidindo com essa política econômico-social é ainda o ecletismo que domina o pensamento teórico, como instrumento conceptual para a explicação da realidade, empolgando a inteligência brasileira do Segundo Reinado. O ambiente histórico era propício ao ecletismo de Victor Cousin, esse sistema a ser aplicado à ciência e à religião como reação ao sensualismo de Locke e Condillac. Cousin admitia no conhecimento percepções sensíveis e concepções racionais. Reduziu, assim, a quatro todos os sistemas filosóficos: sensualismo, idealismo, ceticismo e misticismo, para acolher destes o que julgou aproveitável. O conservadorismo tradicionalista nacional encontrava, portanto, no ecletismo o equilíbrio natural para a estabilização do Império. Ao lado desta corrente dominante, havia um grupo de "reação católica" identificado no tradicionalismo, krausismo, rosminianismo, além do neotomismo, que traduziam os anseios de uma elite espiritualista que se opunha à cultura oficial, então empirista e liberal, senão mesmo espiritualista, mas de um espiritualismo racionalista, indiferente ao cristianismo.(p. 62) Não obstante, no decênio que se estende 1868 a 1878, esse ideal romântico de vida começa a se romper. Um sintoma de renovação se insinua nas camadas intelectuais, desencantadas com as quimeras liberais da monarquia. A Ilustração Brasileira, de fundo iluminista e cientificista, inicia seus ataques a Victor Cousin, escudada em nova tendência: o positivismo. Porém, se Cousin é banido do pensamento da intelectualidade brasileira, sua herança eclética permanece. O pensamento teórico concretiza-se mercê das diversas correntes positivistas, evolucionistas, constitucionalistas (imitadoras do constitucionalismo norteamericano) e da tradição liberal do Império, vinculada ao empirismo e ao utilitarismo inglês. Por volta de 1870, frente ao desafio de um sistema político-instituciOnal que já não atendia aos interesses das camadas privilegiadas, os intelectuais, acompanhando o movimento do espírito humano, se voltam, novamente, para a Europa em busca de novas teorias e hipóteses que, sintetizando a nossa realidade concreta, explicassem-na através de um processo de transformações. Abre-se, então, um novo período na história do pensamento brasileiro. 

"Um bando de idéias novas", na expressão de Sílvio Romero, acompanhando o desenvolvimento (p. 63)da ciência e da tecnologia, começam a impregnar a vida intelectual, determinando um notável progresso do espírito científico. E o que vemos é uma coexistência de orientações, muitas vezes antagônicas, como o monismo evolucionista de Haeckel e Noiré, o materialismo de Buchner e Vogt, o individualismo de Stuart MiII, de Laboulaye e de Lastárria, o positivismo dissidente de Littré e Taine, as concepções políticas e sociais aplicadas à psicologia de Le Bon, o determinismo de Fouylleé e de Buckle, as teorias do governo constitucional de Guizot, o experimentalismo de Leon Donnat, o federalismo de Pi y Margal, as concepções do Estado Nacional de Bluntschli, os programas liberal-democráticos de Tocqueville, os novos métodos de pesquisa sociológica de Lilienfeld, as teorias sociológicas de Roberty. Mas, os nossos intelectuais também receberam, embora de modo atenuado, a influência dos primeiros socialistas utópicos franceses (Fourier, SaintSimon, Louis Blanc e outros), bem como sentiram a repercussão da revolta comunista ocorrida na Segunda República francesa, do aparecimento do Manifesto comunista de Marx e Engels, da fundação da Primeira Internacional e, ainda, da Com una parisiense de 1871. Em suma, os dados teoréticos do despotismo esclarecido em voga no século XVIII e os da escola (p. 64) teocrática de princípios do século XIX são corrigidos pelo espírito científico da escola histórica, secundada e desenvolvida pela filosofia positiva. De modo geral, os intelectuais se vinculam a duas orientações filosóficas principais: o positivismo de Augusto Comte, com sua pretensão de substituir o pensamento abstrato pela razão e pela observação, lançando as bases de uma nova ordem social, ao mesmo tempo que desenvolve a doutrina da religião da humanidade; e a evolucionismo social de Herbert Spencer com seu individualismo extremado, embasado no princípio do progresso contínuo e da evolução social. O caráter individualista do romantismo sofre uma transformação, e a elite intelectual, numa visão comtista e/ou spenceriana, ou mesmo num amálgama de diversas correntes, onde se visualizam leituras de Kant e Hegel, irá fazer sua reflexão sobre o social, na busca de uma ideologia política adequada às lutas pelo poder da oligarquia rural. É a reeuropeização que surge na luta entre individualismo e idealismo em nossa evolução histórica; mas trata-se, sobretudo, de uma reeuropeização dos níveis de aspiração das classes dominantes ou de suas elites dirigentes. Realmente, o que se transfere de imediato são as normas, as instituições e os valores sociais, que irão orientar o comportamento das classes (p. 65)dominantes no ajustamento de seus interesses sóqio-eéonômicos imediatistas. " Assim, favorecidos pela oligarquia cafeeira, o positivismo e o evolucionismo assentam suas bases nas cidades e permanecem no círculo restrito das camadas letradas. Contudo, tanto um como outro, minimizando as concepções espiritualistas, e mesmo idealistas ou racionalistas, como' o criticismo kantiano e a dialética hegeliana, entra.m no Brasil de maneira diversa daquela como eram entendidos e praticados na Europa. A princípio, o positivismo resultou em uma mentalidade científica generalizadora, alheia às particularidades sul-americanas. Porém, a pouco e pouco, aproveitado como método de trabalho, juntamente com o evolucionismo de Spencer e as idéias democrático-liberais do constitucionalismo norte-americano, servirá de esteio aos que advogam uma república democrática, frutificando-se, assim, em um instrumento teórico a ser utilizado na transformação dá realidade concreta. Alguns anos antes da morte de Augusto Comte (1857) já se encontram positivistas no Brasil, mas são ainda elementos isolados que nenhuma influência exercem sobre a vida política do país, pois se ligavam mais aos problemas científicos relacionados (p. 66) à fisiologia, à física ou à matemática do que propriamente à política, ou mesmo, à literatura social. A primeira manifestação do positivismo no Brasil verificou-se em 1844, quando o dr. Justiniano da Silva Gomes apresentou à Faculdade de Medicina da Bahia uma tese: Plano e Método de um Curso de Filosofia. Contudo, a primeira manifestação social do positivismo data de 1865, com a publicação da obra de Francisco António Brandão Júnior sobre a escravidão no Brasil, A Escravatura no Brasil, precedida de um artigo sobre a agricultura e colonização no Maranhão. 

O positivismo penetra no Brasil já cindido em dois grupos: o de Pierre Laffitte, com sua ortodoxia dogmática da religião da humanidade, seguindo à risca os ensinamentos do mestre de Montpellier, em sua evangelização dos espíritos, na tentativa de mostrar o papel unificador da religião positiva, e o de Paul-Émile Littré, que se afastava da evolução agnóstica para impor a emancipação do espírito, considerando o ateísmo a única religião que convinha a um autêntico positivismo. Esse grupo dissidente desprezava o movimento da religião da humanidade para seguir Augusto Comte apenas em sua metodologia científica de observação, experimentação e comparação, e em sua filosofia política. Fundamentando-se na solução dos problemas humanos através do método científico, a doutrina de (p. 67) Comte passa a ser discutida abertamente - repudiando a metafísica improdutiva que desde a Independência caracterizava com sua retórica palavrosa todas as manifestações intelectuais do país -, não só em Pernambuco, como no Rio de -Janeiro, onde pontifica Benjamin Constant Botelho de Magalhães (formado em ciências físicas e matemáticas) na Escola Normal, da qual é fundador, e na Escola Militar, onde ensina à juventude as bases do positivismo. Muito prestigiado pelos jovens oficiais, Benjamin Constant os conduzirá para o movimento republicano. Esses militares encontraram no positivismo uma justificativa para rechaçar a cultura política imperial, baseada sobre os estudos jurídicos e não sobre as novas ciências naturais e sociais; como também descobriram os instrumentos adequados para formular as exigências de um novo tipo de autoritarismo em defesa dos seus interesses corporativos. A nossa bandeira, com seu Ordem e Progresso, mostra quanto a doutrina positivista teve aceitação mesmo entre nossos republicanos históricos. (Ao positivismo se deve ainda a reestruturação do ensino, a separação da Igreja do Estado, a liberdade de cultos, a semente da legislação trabalhista.) Deste modo, dominando as consciências das classes privilegiadas, o positivismo irá repercutir intensamente nas escolas, influenciando a mocidade, (p. 68) cuja cultura intelectual era mais literária do que científica. Na época, só os militares, médicos e engenheiros entregavam-se a estudos científicos. A reação positivista nascida em Pernambuco, impregnada de racionalismo científico, sofre a oposição de Tobias Barreto, que embasado no culturalismo sociológico de Ihering semeia as idéias gerais que irão se constituir na futura Escola de Recife, onde brilhariam Sílvio Romero, Clóvis Bevilaqua, Artur Orlando, Martins Júnior, Fausto Cardoso, Tito Lívio de Castro. No Rio de Janeiro, praticamente sozinho, Luís Pereira Barreto preconiza a ciência positiva e dá início a uma nova etapa para a evolução das idéias do positivismo, voltando-se para a realidade nacional. Ali um grupo de pensadores, preocupados pela restauração da ordem social, irá vincular-se aos aspectos religiosos do pensamento de Comte, na tentativa de estabelecer, mais por meios morais do que legais, um despotismo da sociedade sobre o indivíduo, apoiando-se no papel unificador da religião positivista. É esse positivismo integral - método filosófico e religião da humanidade - que invade as províncias na propaganda doutrinária, sistematicamente organizada por Miguel Lemos e Teixeira Mendes, "convertidos" ao positivismo ortodoxo por Laffitte. Essa propaganda é exercida sobretudo pelo Apostolado Positivista no Brasil, que se localizava ( p. 69 ) na travessa do Ouvido r, 7, Rio de Janeiro (hoje, na rua Benjamin Constant, 74, Glória) e cujo principal objetivo é a propagação da religião da humanidade pela ação oral e escrita e pelo exemplo: a propaganda positivista não era feita apenas a nível da intelectualidade. Era divulgada também, só no Rio de Janeiro, por quatro jornais: "A Razão", "O Rebate", "A Crença" e "A Crônica do Império". Mas, mesmo em outros jornais não engajados na campanha de defesa dos ideais de Comte estava presente, como no "O Mequetrefe", dirigido por Aluísio de Azevedo, que também acolhia artigos de Miguel Lemos, e na "Revista do Rio de Janeiro", de nítida orientação positivista, chefiada por Artur de Azevedo. É de se notar que, nessa época, o abolicionista José do Patrocínio revelou-se seguidor das idéias de Augusto Comte. Miguel Lemos e Teixeira Mendes e outros elementos do Apostolado - preocupados com a ética positivista em seu programa de formar uma consciência moral e social, que desde as bases pudesse ser 'inspiradora de todos os idealismos humanos, nacionais e sociais - dedicam-se à instituição de culto do Grande Ser, assumindo o compromisso de não se envolverem, politicamente, nos movimentos republicanos, pois entendiam que as leis científicas do progresso cumprir-se-iam fatalmente. (p. 70) Ademais, em completo antagonismo com os republicanos, que seguiam os princípios democrático-liberais do constitucionalismo norte-americano e as concepções orgânicas do Estado, esses positivistas ortodoxos entendiam, com Augusto Comte, que deveriam "libertar o Ocidente de uma democracia anárquica e de uma aristocracia retrógrada em favor de uma sociocracia". Declarando que não eram nem democratas nem aristocratas e proclamando que o governo da República devia ser exclusivamente temporal e transitório, mantendo a completa liberdade espiritual, os positivistas do Apostolado se mostravam favoráveis a uma República ditatorial para se efetuar a ordem e o progresso sem perturbações sociais. Por meio dela seria alcançada a incorporação do proletariado à sociedade moderna, bem como haveria a transformação da classe burguesa, dos ontologistas e dos legalistas. Destarte, o processo republicano não seria democrático riem parlamentar, porém o poder deveria concentrar-se nas mãos de um só homem, o ditador ou presidente da República, cuja ação seria exercida no domínio material, sem intervenção espiritual, e cujo sucessor seria por ele indicado, para dar continuidade e consistência à República, defendendo-a dos aristocratas e burgueses. (p. 71) Para os positivistas do Apostolado, a ditadura não é tirania, não é autocracia, uma vez que a exerça um governo verdadeiramente republicano. Ditadura, para eles, significa governo em que se concilia o predomínio político da força material, que desconhece a livre supremacia de uma autoridade espiritual independente, com a preocupação exclusiva do bem público. Entendiam que para se chegar à ditadura bastaria tirar ao parlamento a atribuição legislativa, dando-lhe o caráter de uma assembléia puramente financeira. A República faria essa transmutação com facilidade, porque, segundo esses positivistas, nos parlamentos em geral é o poder executivo que predomina. A reação contra esse positivismo dogmático e autoritário não se fez esperar. Sua orientação é modificada, transformando-o em uma das forças espirituais decisivas do pensamento brasileiro. E o positivismo em sua versão spenceriana passa a caracterizar a vida político-cultural. 

Os chamados positivistas dissidentes, que caminhavam com Littré, em seu desprezo às abstrações metafísicas'. do subjetivismo centrado sobre o "eu" pessoal, esposam, agora, o evolucionismo liberal de Herbert Spencer, com seu marcante individualismo, que se prestava melhor ao ideal de democracia, de evolução sem saltos, de constitucionalismo. (p. 72) Os dissidentes - que apenas admitiam do positivismo comtiano seu método - rompem com o conformismo essencialmente conciliatório da época, para expor, de maneira sistematizada, a confiança da oligarquia cafeeira, que representam, em seu próprio impulso transformador da sociedade. Para alguns, o positivismo seria simples rótulo para a conduta ideal de oposição à monarquia. Era uma recomendação, como notou José Veríssimo. E o exemplo típico foi o positivismo que ecoou nas arcadas da Faculdade de Direito de São Paulo, com acentuado criticismo no plano lógico e um republicanismo de aspecto nitidamente revolucionário no plano das realidades político-sociais.

 Para outros, o positivismo impunha sua dose de cientificismo, juntamente com o liberalismo e o individualismo inglês, que se compendiavam nos livros de Comte, Spencer e Stuart MiII, para só citar os principais representantes. I Mas é de Spencer, ou melhor, a partir de . Spencer que, empregando fórmulas como organismo social, a instabilidade do homogêneo, a diferenciação e a relatividade do conhecimento, que os teóricos positivistas dissidentes irão esforçar-se para conciliar as doutrinas contemporâneas sobre a ciência política. Assim, foi muito mais o evolucionismo do que o positivismo - oferecendo os ingredientes ideológicos (p. 73) à classe média urbana, onde lavrava maior descontentamento com o regime, e que tinha meios de traduzir o descontentamento em atos para a "liberalização" do país, para colocá-lo ao nível do século, mostrando as contradições entre os modelos ideais e as formas reais de organização social que exprimiu o conceito de democracia liberal que concretizava também os ideais políticos da elite dirigente, dentro de um esquema lógico da evolução liberal-democrática, segundo o critério de Spencer. Democracia liberal era a palavra-chave da época. O advento, portanto, dos dois pensamentos . positivista e evolucionista - no Brasil, não foi devido simplesmente ao gosto pelas novidades européias. Porém, foi uma tentativa de adaptar essas idéias novas às coordenadas do pensamento racional, em sua oposição às especulações do romantismo e do idealismo, em que se assentava o Segundo Império. Realmente, a estrutura colonial remodelava-se, e o positivismo, neste contexto, modernizando o pensamento brasileiro, irá contribuir para o advento de uma nova concepção de valores. Deste modo, conjugando o comtismo ortodoxo, o positivismo: dissidente de Littré, as generalizações de Spencer com as conquistas liberais do século, os nossos pensadores políticos, impregnados desse espírito positivo, caminham no sentido de uma consciência crítica, numa tentativa de concretização de (p. 74) suas idéias políticas, que refletem a observação direta do modo de ser de sua sociedade. De um lado, as idéias novas se apresentaram como um instrumento para a renovação do sistema, dando esteio aos intelectuais para construírem a ideologia republicana, numa tentativa de influírem sobre a atividade geral do grupo dominante, proporcionando-lhe homogeneidade e consciência de si mesmo e de sua função nos planos econômico, político, social e cultural.. Por outro lado, essas idéias em nada contribuíram para o progresso que pregavam, devido não só à falta de respaldo popular, como ao enfeudamento cada vez mais estreito da oligarquia cafeeira que, reforçada em seu prestígio e poder, iria manter um sistema político-institucional de dominação sócio-econômica das classes e grupos restantes. É bom notar, contudo, que as preocupações sociais de Comte impregnaram, direta ou indiretamente, a atuação administrativa de Getúlio Vargas, correligionário do positivista riograndense Júlio de Castilhos. A legislação trabalhista, por exemplo, principal preocupação do governo Vargas, foi o desenvolvimento da idéia contida no artigo 74 da Constituição positivista do Rio Grande do Sul, elaborada por Júlio de Castilhos, e que tem conexão com as medidas propostas sobre o assunto por Teixeira Mendes e Benjamin Constant. Por outro lado, a influência do comtismo no Exército só (p. 75) passaria a entrar em declínio depois de 1930, com a reforma introduzida no ensino militar, com a Escola transferida do Realengo para Agulhas Negras, embora o nome de Benjamin Constant continuasse no "Almanaque do Exército" como se vivo ainda fosse, como general em comando e fundador da República. 

INDICAÇÕES PARA LEITURA 

Infelizmente, as obras capitais de Augusto Comte e de Herbert Spencer ainda não foram traduzidas para o português. Não bastasse isto, são poucas as bibliotecas que as possuem completas. E como são livros raros há uma certa dificuldade para consultá-Ios. Um dos maiores acervos sobre o positivismo se encontra na Igreja Positivista do Brasil, localizada no Rio de Janeiro, à rua Benjamin Constant, 74, Glória. No Estado de São Paulo, existe um bom acervo na biblioteca da Faculdade de Direito da USP e no Centro de Ciências, Letras e Artes, da cidade de Campinas. Há muitas obras em português sobre o positivismo, porém indico apenas aquelas que são facilmente encontradas: Com os textos de Augusto Comte existem: da coleção Os Pensadores, S. Paulo, Editora Abril, 1973, o volume XXXIII; da coleção Grandes Cientistas Sociais, Comte (sociologia), S.Paulo, Editora Ática, 1978, organizado por Evaristo de Morais Filho, e o livro de André Vergez e Denis Huisman, História dos filósofos ilustrada pelos textos, Rio, Ed. Freitàs Bastos, 1972. Há ainda traduzidos, de Comte: Opúsculos de filosofia social, Porto Alegre, Ed. Globo/EDUSP, trad. Ivan Uns e João Francisco de Souza, 1972; e Discurso sobre o espírito positivo, Porto Alegre, Ed. Globo/EDUSP, trad. Renato Barbosa Rodrigues Pereira e Ivan Uns, 1976. Politica Positiva de Augusto Comte (resumida por António Valença de Mello), Rio, Ed. Civilização Brasileira, 1979. Sobre o Apostolado Positivista e sobre o positivismo dissidente há uma série de texto selecionados por Antonio Paim em dois livros editados pela Universidade de Brasília, em 1981: O Apostolado Positivista e a República e Plataforma política do positivismo ilustrado. As obras de Herbert Spencer, contudo, não são facilmente encontradas, mesmo em textos selecionados. Para uma compreensão geral do positivismo no Brasil, pode-se consultar com proveito: CHACON, Vamirech, História das idéias sociológicas no Brasil, Grijalbo/EDUSP, 1977. CRUZ COSTA, J., Contribuição à história das idéias no Brasil, Rio, J. Olympio, 1956. _, Panorama da história da filosofia no Brasil, S. Paulo, Cultrix, 1960. _, Comte e as Origens do Positivismo, SP, Ind. Graf. S. Magalhães, 1951. LlNS, Ivan, História do positivismo no Brasil, S. Paulo, Ed. Nacional (Brasiliana, 322), 1964. MACHADO, Geraldo Pinheiro, A filosofia no Brasil, S. Paulo, Ed. Cortez & Morais, 1976. MORAIS FilHO, Evaristo de, Augusto Comte e o Pensamento Contemporâneo, Rio, Uv. S. José, 1957. OLIVEIRA TORRES, J. Camilo de, O Positivismo no Brasil, Petrópolis, Ed. Vozes, 1943. PAIM, António, História das idéias filosóficas no Brasil, S. Paulo, Grijalbo/EDUSP. _, A filosofia da Escola de Recife, S. Paulo, Ed. Convívio (Col. Ensaios), 1981. RIBEIRO JÚNIOR, João, Alberto Sal1es: Trajetória Intelectual e Pensamento Político, SP, Ed. Convívio, 1983. SOBRE O AUTOR Nasci em Jundiaí, São Paulo, em 1939. Atualmente, sou professor titular no Instituto de Artes e Comunicações da PUCCAMP. Poeta bissexto, publiquei três livros de poesia: Sob o Signo de Eros (1980), Ateliê da Alma (1981) e Jornada nas Trevas (1983). Artista plástico, quando sobra tempo, participei d~ salões de pintura, com algumas menções honrosas. Colecionador inveterado de livros e diplomas, sou formado em Direito pela USP e em História e Estudos Sociais pela PUCCAMP, onde recebi também o título de Mestre em Filosofia Social. Tenho ainda cursos de especialização no campo do Direito e da História, bem como o título de Doutor em Filosofia da Educação pela UNlCAMP. Tenho publicados além de alguns artigos em revistas, vários livros, entre eles: O que é Positivismo (1982), O que é Magia (1982), Alberto Saltes: Trajetória Intelectual e Pensamento Político (1983), Grécia Mitológica (1984), O que é Nazismo (1986). Também participei de diversas coletâneas. Concordo com André Breton quando diz que o homem põe e dispõe. Depende dele só pertencer-se por inteiro.




quarta-feira, 26 de maio de 2021

TRECHOS DO LIVRO: O QUE É PÓS-MORDENO

Há qualquer coisa no ar. Um fantasma circula entre nós nestes anos 80: o pós-modernismo. Uma vontade de participar e uma desconfiança geral. Jogging, sex-shops, mas gente dizendo: "Deus está morto, Marx também e eu não estou me sentindo muito bem." Videogames em casa, auroras de laser na danceteria. Nietzsche e Boy George comandam o desencanto radical sob o guarda-chuva nuclear. Nessa geléia total, uns vêem um piquenique no jardim das delícias; outros, o último tango à beira do caos. Pós-modernismo é o nome aplicado às mudanças ocorridas nas ciências, nas artes e nas sociedades avançadas desde 1950, quando, por convenção, se encerra o modernismo (1900-1950). Ele nasce com a arquitetura e a computação nos anos 50. Toma corpo com a arte Pop nos anos 60. Cresce ao entrar pela filosofia, durante os anos 70, como crítica da cultura ocidental. E amadurece hoje, alastrando-se na moda, no cinema, na música e no cotidiano programado pela tecnociência (ciência + tecnologia invadindo o cotidiano com desde alimentos processados até microcomputadores), sem que ninguém saiba se é decadência ou renascimento cultural.

Mas apertemos o cerco ao fantasma. Imaginemos uma fabulazinha onde o herói seja um certo urbanóide pós-moderno: você. Ao acordá-lo, o rádio-relógio digital dispara informações sobre o tempo e o trânsito. Ligando a FM, lá está o U-2. O vibromassageador amacia-lhe a nuca, enquanto o forno microondas descongela um sanduíche natural. No seu micro Apple II, sua agenda indica: REUNIÃO AGÊNCIA 10H/ TÊNIS CLUBE 12H/ ALMOÇO/ TROCAR CARTÃO MAGNÉTICO BANCO/ TRABALHAR 15H/ PSICOTERAPIA 18H/ SHOPPING/ OPÇÕES: INDIANA JONES-BLADE RUNNER VIDEOCASSETE ROSE, SE LIGAR / SE NÃO LIGAR, OPÇÕES: LER O NOME DA ROSA (ECO) - DALLAS NA TV - DORMIR COM SONÍFEROS VITAMINADOS/.

Seu programa rolou fácil. Na rua divertiu-se pacas com a manifestação feminista pró-aborto que contava com um bloco só de freiras e, a metros dali, com a escultura que refazia a Pietá (aquela do Miguelangelo) com baconzitos e cartões perfurados. Rose ligou. Você embarcou no filme Indiana Jones sentado numa poltrona estilo Menphis - uma pirâmide laranja em vinil - desfiando piadas sobre a tese dela em filosofia: Em Cena, a Decadência. A câmera adaptada ao vídeo filmou vocês enquanto faziam amor. Será o pornô que animará a próxima vez.

Ao trazê-lo de carro para casa, Rose, que esticaria até uma festa, veio tipo impacto: maquiagem teatral, brincos enormes e uma gravata prateada sobre o camisão lilás. Na cama, um sentimento de vazio e irrealidade se instala em você. Sua vida se fragmenta desordenadamente em imagens, dígitos, signos - tudo leve e sem substância como um fantasma. Nenhuma revolta. Entre a apatia e a satisfação, você dorme.

A fabulazinha, claro, não tem moral nem permite conclusões, mas põe na bandeja os lugares por onde circula o fantasma pós-moderno.

1. Para começar, ele invadiu o cotidiano com a tecnologia eletrônica de massa e individual, visando à sua saturação com informações, diversões e serviços. Na Era da Informática, que é o tratamento computadorizado do conhecimento e da informação, lidamos mais com signos do que com coisas. O motor a explosão detonou a revolução moderna há um século; o chip, microprocessador com o tamanho de um confete, está causando o rebu pós-moderno, com a tecnologia programando cada vez mais o dia- a-dia.

2. Na economia, ele passeia pela ávida sociedade de consumo, agora na fase do consumo personalizado, que tenta a sedução do indivíduo isolado até arrebanhá-lo para sua moral hedonista - os valores calcados no prazer de usar bens e serviços. A fábrica, suja, feia, foi o templo moderno; o shopping, feérico em luzes e cores, é o altar pós-moderno.

3. Mas foi na arte que o fantasma pós-moderno, ainda nos anos 50, começou a correr o mundo. Da arquitetura ele pulou para a pintura e a escultura, daí para o romance e o resto, sempre satírico, pasticheiro e sem esperança. Os modernistas (vejam Picasso) complicaram a arte por levá-la demasiado a sério. Os pós-modernistas querem rir levianamente de tudo.

4. Enfim, o pós-modernismo ameaça encarnar hoje estilos de vida e de filosofia nos quais viceja uma idéia tida como arqui-sinistra: o niilismo, o nada, o vazio, a ausência de valores e de sentido para a vida. Mortos Deus e os grandes ideais do passado, o homem moderno valorizou a Arte, a História, o Desenvolvimento, a Consciência Social para se salvar. Dando adeus a essas ilusões, o homem pós- moderno já sabe que não existe Céu nem sentido para a História, e assim se entrega ao presente e ao prazer, ao consumo e ao individualismo. E aqui você pode escolher entre ser:

a) a criança radiosa - o indivíduo desenvolto, sedutor, hedonista integrado à tecnologia, narcisista com identidade móvel, flutuante, liberado sexualmente, conforme o incensam Lipovestsky, Fiedler e Toffler, alegres gurus que vamos visitar logo mais;

b) o andróide melancólico - o consumidor programado e sem história, indiferente, átomo estatístico na massa, boneco da tecnociência, segundo o abominam Nietzsche e Baudrillard, Lyotard, profetas do apocalipse cujo evangelho também vamos escutar.

Assim, tecnociência, consumo personalizado, arte e filosofia em torno de um homem emergente ou decadente são os campos onde o fantasma pós-moderno pode ser surpreendido. Ele ainda está bastante nebuloso, mas uma coisa é certa: o pós-modernismo é coisa típica das sociedades pós-industriais baseadas na Informação - EUA, Japão e centros europeus. A rigor nada tem a ver com o Brasil, embora já se assista a um trailer desse filme por aqui.

........ Observe o videoclip que abre o programa de TV Fantástico, o 'Show da Vida, que já no título 'espetaculariza' o viver. Uma pirâmide e um cone dourados evoluem na tela, fragmentam-se em anéis transformados em plataformas suspensas onde bailarinos em trajes ao mesmo tempo futuristas e antigos dançam uma peça musical executada por orquestra e sintetizador. Para quem não sabe, o balé foi filmado em palco normal no Maracanãzinho e um computador recortou toda a seqüência para imprimi- la sobre as plataformas aéreas, cujos movimentos também foram criados por computação. O show na Verdade não é nem a energia misteriosa simbolizada pela pirâmide (passado), nem a ciência sugerida pelo cone (futuro), mas a dança livre da matéria no espaço, a levitação simulada tecnologicamente. Aliada ao computador, a televisão simulou um espaço hiper-real, espetacular, que excita e alegra como um acrobata.

E daí? Daí que a levitação, em si desejável mas inviável na gravidade, parece ser possível na TV. O hiper-real simulado nos fascina porque é o real intensificado na cor, na forma, no tamanho, nas suas propriedades. É um quase sonho. Vejo um close do iogurte Danone em revistas ou na TV. Sua superfície é enorme, lustrosa, sedutora, tátil - dá água na boca. O Danone verdadeiro é um alimento mixuruca, mas seu simulacro hiper-realizado amplifica, satura sua realidade. Com isso, somos levados a exagerar nossas expectativas e modelamos nossa sensibilidade por imagens sedutoras.

O ambiente pós-moderno significa basicamente isso: entre nós e o mundo estão os meios tecnológicos de comunicação, ou seja, de simulação. Eles não nos informam sobre o mundo; eles o refazem à sua maneira, hiper-realizam o mundo, transformando-o num espetáculo. Uma reportagem a cores sobre os retirantes do Nordeste deve primeiro nos seduzir e fascinar para depois nos indignar. Caso contrário, mudamos de canal. Não reagimos fora do espetáculo. (pág. 13)

............... (D)escobriu-se há alguns anos, com a Lingüística, a Antropologia, a Psicanálise, que, para o homem, não há pensamento, nem mundo (nem mesmo homem), sem linguagem, sem algum de Representação. Mais: a linguagem dos meios de comunicação dá forma tanto ao nosso mundo (referente, objeto), quanto ao nosso pensamento (referência, sujeito). Para serem alguma coisa, sujeito e objeto passam ambos pelo signo. A pós-modernidade é também uma Semiurgia, um mundo super- recriado pelos signos.

Quando nosso urbanóide, na fabulazinha, se sente irreal, o ego e o mundo surgindo-lhe vagos como um fantasma, é porque ele manipula cada vez mais signos em vez de coisas. Sua

sensibilidade é frágil, sua identidade, evanescente. Na pós-modernidade, matéria e espírito se esfumam em imagens, em dígitos num fluxo acelerado. A isso os filósofos estão chamando de desreferencialização do real e dessubstancialização do sujeito, ou seja, o referente (a realidade) se degrada em fantasmagoria e o sujeito (o indivíduo) perde a substância anterior, sente-se vazio.

Há exemplos chocantes disso. Quanto ao referente: compra-se um Monza não tanto por suas qualidades técnicas, mas por seu design, seu nome nobre, seus signos na publicidade, que compõem uma imagem de status e bom gosto europeizados. Compra-se um discurso sobre o Monza. Quanto ao sujeito: a falta de substância está na extrema diferenciação que as pessoas procuram através da moda, personalizando- se pela aparência e o narcisismo levado à extravagância; ou então, imitando modelos exóticos...... (Pág. 15)

............ Sublinhamos até aqui palavras que são verdadeiras senhas para invocar o fantasma pós- moderno: chip, saturação, sedução, niilismo, simulacro, hiper-real, digital, desreferencialização, etc. Dificilmente elas serviriam para descrever o mundo de 30 ou 40 anos atrás, o mundo moderno, quando se falava em energia, máquina, produção, proletariado, revolução, sentido, autenticidade. Mas se a pós- modernidade significa mudanças com relação à modernidade, o fato é que não se pode dispensar o aço, a fábrica, o automóvel, a arquitetura funcional, a luz elétrica - conquistas associadas ao modernismo. Assim, no fundo, o pós-modernismo é um fantasma que passeia por castelos modernos.

Mas as relações entre os dois são ambíguas. Há mais diferenças que semelhanças, menos prolongamentos que rupturas. O individualismo atual nasceu com o modernismo, mas o seu exagero narcisista é um acréscimo pós-moderno. Um, filho da civilização industrial, mobilizava as massas para a luta política; o outro, florescente na sociedade pós-industrial, dedica-se à minorias sexuais, raciais, culturais, atuando na micrologia do cotidiano.

Por ora, contentemo-nos com saber que pós contém um des - um princípio esvaziador, diluidor. O pós-modernismo desenche, desfaz princípios, regras, valores, práticas, realidades. A des- referencialização do real e a des-referencialização do real e a des-substancialização do sujeito, motivadas pela saturação do cotidiano pelos signos, foram os primeiros exemplos. Muitos outros virão.

Entendamos ainda que o pós-modernismo é um ecletismo, isto é, mistura várias tendências e estilos sob

o mesmo nome. Ele não tem unidade; é aberto, plural e muda de aspecto se passamos da tecnociência para as artes plásticas, da sociedade para a filosofia. Inacabado, sem definição precisa, eis por que as melhores cabeças estão se batendo para saber se a "condição pós-moderna" __ mescla de purpurina com circuito integrado - é decadência fatal ou renascimento hesitante, agonia ou êxtase. Ambiente? Estilo? Modismo? Charme? Para dor dos corações dogmáticos, o pós-modernismo por enquanto flutua no indecidível. (págs. 17-19)

........., depois que a matéria se desintegrou em energia (boom ) e esta agora se sublima em informação (bit ), assistimos na sociedade pós-industrial à desmaterialização da economia. O mundo se pulveriza em signos, o planeta é uma rede pensante, enquanto o sujeito fica um nó de células nervosas a processar mensagens fragmentárias. Eis por que falamos há pouco em desreferencialização do real e dessubstancialização do sujeito. O que foi processado em bit (real) é difundido em blip -_ pontos, retalhos, fragmentos de informações (para o sujeito). O indivíduo na condição pós-moderna é um sujeito blip, alguém submetido a um bombardeio maciço e aleatório de informações parcelares, que nunca formam um todo, e com importantes efeitos culturais, sociais e políticos. Pois a vida no ambiente pós-moderno é um show constante de estímulos desconexos onde as vedetes são o design, a moda, a publicidade, os meios de comunicação.

Projetando formas atraentes, embalagens apelativas, o design estetiza (embeleza) o cotidiano saturado por objetos. Eles viram informação estética com suas cores, suas superfícies lisas, suas linhas aerodinâmicas, e são verdadeiras iscas de sedução. Vai-se ao hipermercado, onde a

mercadoria é o espetáculo, para passear, e comprar __ gesto banal __ torna-se um jogo de gratificação. A moda e a publicidade, por sua vez, têm por missão erotizar o dia-a-dia com fantasias e desejos de posse. Uma carga erótica deve envolver por igual pessoas e objetos para impactar o social, sugerindo ao indivíduo isolado um ideal de consumo personalizado, ao massagear seu narcisismo. A comunicação, desde as FM até os videoclips, agita-se para mantê-lo o tempo todo ligado, na base do "não se reprima". (pág. 27)

Arte moderna e pós-moderna

... O modernismo é a Crise da Representação realista do mundo e do sujeito na arte. A estética tradicional fracassa ao captar um mundo cada vez mais confuso e um indivíduo cada vez mais fragmentado. Novas linguagens deveriam surgir para que um sujeito caótico pudesse não representar, mas interpretar livremente a realidade, segundo sua visão particular. Para isso, a nova estética modernista cavou um fosso entre arte e realidade. A arte fica autônoma, liberta-se da representação das coisas (a fotografia já o fazia muito melhor), decretando o fim da figuração, usando a deformação, a fragmentação, a abstração, o grotesco, a assimetria, a incongruência. Linguagem nova quer dizer forma nova, não imitativa. Nascem aí o formalismo e o hermetismo da arte moderna, que é um jogo com formas inventadas. Pois ela não fala de um mundo exterior ao quadro, à escultura. Deformando ou banindo o referente (o real), ela cria formas novas e torna-se por isso auto-referencializada. Ela é seu próprio assunto: linhas, cores, volumes, composição. Basta comparar Da Vinci com Picasso. Reconheceríamos na rua a Mona Lisa, mas jamais encontraríamos fora da tela as cubistas Senhoritas d'Avignon, feitas em losangos, que abrem a pintura moderna em 1907. (pág. 33-34)

............. Foi contra o subjetivismo e o hermetismo modernos que surgiu a arte Pop, primeira bomba pós-moderna. Convertida em antiarte, a arte abandona os museus, as galerias, os teatros. É lançada nas ruas com outra linguagem, assimilável pelo público: os signos e objetos de massa. Dando valor artístico à banalidade cotidiana - anúncios, heróis de gibi, rótulos, sabonetes, fotos, stars de cinema, hamburguers -, a pintura/escultura Pop buscou a fusão da arte com a vida, aterrando o fosso aberto pelos modernistas. A antiarte pós-moderna não quer representar (realismo), nem interpretar (modernismo), mas apresentar a vida diretamente em seus objetos. Pedaço do real dentro do real (veja as garrafas reais penduradas num quadro), não um discurso à parte, a antiarte é a desestetização e a desdefinição da arte. Ela põe fim à "beleza", à "forma", ao valor "supremo e eterno" da arte (desestetização) e ataca a própria definição de arte ao abandonar o óleo, o bronze, o pedestal, a

moldura, apelando para materiais não artísticos, do cotidiano, como plástico, latão, areia, cinza, papelão, fluorescente, banha, mel, cães e lebres, vivos ou mortos (desdefinição)

Isto só foi possível por duas razões. Primeiro porque o cotidiano se acha estetizado pelo design e, como vimos, os objetos em série são signos digitalizados e estilizados para a escolha do consumidor. Depois, porque nosso ambiente é todo ele constituído pelos mass media. Vivemos imersos num rio de signos estetizados. O artista Pop pode diluir a arte na vida porque a vida já está saturada de signos estéticos massificados. A antiarte trabalha sobre a arte dos ilustradores de revistas, publicitários e designers, e acaba sendo uma ponte entre a arte culta e a arte de massa; pela singularização do banal (quando Andy Warhol empilha caixas de sabão dentro de uma galeria e diz que é escultura) ou pela banalização do singular (quando Roy Litchtenstein repinta em amarelo e vermelho, cores de massa, a Mulher com o chapéu Florido, de Picasso). Elite e massa se fundem na antiarte.

Ao trocar a arte abstrata, difícil, modernista, pela figuração acessível nos objetos e imagens de massa, a antiarte pós-moderna estava revivendo o dadaísmo, tendência modernista que durou pouco (1916/1921) e se dedicava a brincar com objetos no caos cotidiano. No dadaísmo, como na antiarte, o importante é o gesto, o processo inventivo, não a obra. Acabou-se também a contemplação fria e intelectual dos modernos. A antiarte é participativa, o público reagindo pelo envolvimento sensorial, corporal. (Brinca- se à vontade com as bolhas de plástico criadas aqui no Brasil por Lígia Clark.)

Pop, minimal, conceitual, hiper-realismo, processos, happenings, performances, transvanguarda, vídeo-arte - seja qual for o estilo, a antiarte pós-moderna se apóia nos objetos (não no homem), na matéria (não no espírito), no momento (não no eterno), no riso (não no sério). Ela é frívola, pouco crítica, não aponta nenhum valor ou futuro para o homem. Desestetizando-se , desdefinindo-se, tornando difícil saber-se o que é arte o que é realidade, ela tende ao niilismo, a zerar a própria arte. Pois na condição pós-moderna, se o NÃO modernista é inútil, dado o gigantismo dos sistemas, então vamos desbundar alegre e niilisticamente no ZERO PATAFÍSICO. (Oposta às soluções séries, a patafísica __ segundo seu criador, o dadaísta Jerry - é a ciência das soluções imaginárias e ridículas). (pág. 37-38)

COMPARAÇÃO ENTRE MODERNISMO .X PÓS-MODERNISMO

Cultura elevada .........................................Cotidiano banalizado

Arte ...........................................................Antiarte

Estetização ................................................Desestetização

Interpretação ..............................................Apresentação

Obra/originalidade ......................................Processo/pastiche

Forma/abstração .........................................Conteúdo/figuração

Hermetismo .................................................Fácil compreensão

Conhecimento superior ................................Jogo com a arte

Oposição ao público .....................................Participação do público

Crítica cultural ............................................Comentário cômico, social Afirmação da arte .......................................Desvalorização obra/autor (pág. 41)

Arte, Arquitetura e pós modernismo

.... Nas artes, o pós modernismo apareceu primeiro na arquitetura, já nos anos 50. O inimigo mais visado foi o funcionalismo racionalismo da Bauhaus e seu dogma modernista: a forma segue a função. Primeiro a finalidade, depois a beleza. E funcionalismo significava racionalidade com simplicidade, clareza, abstração, janelas em série, ângulo reto. Em suma, nos espigões das selvas de pedra em que vivemos.

A reação pós-moderna começa com arquitetos italianos, depois americanos e ingleses. Contra o estilo universal modernista, voltam-se para o passado, pesquisam novos e velhos materiais, estudam o ambiente, a fim de cria uma arquitetura que fale a linguagem cultural das pessoas que vão utilizá-la. A função passou a obedecer a forma e a fantasia. Aos materiais oferecidos pela indústria moderna, eles acrescentaram materiais abandonados (cascalho) ou bem recentes (fórmica e plexiglass). O ornamento é recuperado: até colunas gregas reaparecem. Os valores simbólicos (o pórtico senhorial) são prestigiados, junto com o retorno a estilos antigos como o barroco. Mas é ao organizar o espaço que o espírito carnavalesco do pós-modernismo se declara. Às retas, racionais, opõem-se a emoção e o humor das curvas. Contra a pureza, o ecletismo: junta-se ornamento barroco com vidro fume. No lugar da abstração, a fantasia (edifícios em forma de piano), e busca-se a vida com a volta da cor. Evita-se a série repetitiva, monótona. O humor é flagrante: no Hotel Bonaventura, em Los Angeles, além dos elevadores externos que caem com espalhafato num lago, o espaço interno é divertidamente complicado, sendo difícil achar-se o caminho para as lojas. Mas a marca típica da arquitetura pós- moderna é a combinatória linhas e formas curvas com linhas e formas oblíquas. Dá em desequilíbrio, decoração, movimento, bizarrice, fantasia, alegria (o oposto do modernismo). (pág. 44-45)

.......... O hiper-realismo ou foto-realismo é uma forma de Arte Pop e pós-moderna, pois copia minuciosamente em tinta acrílica fotografias (simulacros) de automóveis, paisagens urbanas, fachadas, anúncios, que depois são apresentados em tamanho natural ou monumental (hiper, enorme). A tinta acrílica, lustrosa, deixa o real mais intenso, bonito; ou então o poliéster, na escultura, deixa a figura mais viva, vibrante, como se vista numa TV a cores. Novamente o pós-modernismo se apóia no simulacro.

Cláudio Bravo, Dovane Hanson, Richard Smith estão entre os hiper-realistas aclamados internacionalmente, enquanto Gregório Correia, com quadros que surpreendem o

Anhangabaú, em São Paulo, num abandono triste, morto é o foto-realista brasileiro de maior notoriedade. Na escultura, as peças hiper vêm cobertas com materiais reais: roupas, óculos, celofane, etc. (pág. 48-49)

.............A antiarte pós-moderna se desestetiza porque a vida se acha estetizada pelo design, a decoração. Os ambientes atuais já são arte e assim pintura e escultura podem se fundir com a arquitetura, a paisagem urbana, tornando-se fragmentos do real dentro do real. Desde os anos 60 até hoje, artistas como Allan Kaprow, Luas Samarras, El Lissitsky, e os brasileiros Hélio Oiticica, Cildo Meireles têm produzido obras que incorporam todo o espaço ambiental. Objetos acumulados ou distribuídos ao acaso envolvem o espectador para que ele esteja não diante, mas dentro da obra, com os sentidos todos afetados. Misturam-se pintura, escultura, música, arquitetura. É o mixed-media, a fusão de meios.

É o ambiente Tropicália, sala com pássaros, plantas e música tropicais, montado por Hélio Oiticica no Rio em 1967. São os Penetráveis , de Jesus Soto __ tubos plásticos pendentes do teto que, à nossa passagem, criam ondas visuais __ e os Labirintos, armados pelo GRAV __ Grupo de Pesquisa de Arte Visual, sediado em Paris. É She - The Cathedral (Ela, a Catedral), uma enorme mulher deitada em posição de coito, medindo 30m x 10 m x 7m, pintada psicodelicamente, construída com tubos e linho em 1966 por Niki de Saint-Phalle, por cuja vagina, quando exposta em Estocolmo, passaram 80 mil pessoas.

A arte ambiental foi também para os espaços abertos. Houve a cortina de nylon laranja, com 4 toneladas e 400 metros, estendida em 1972 pelo búlgaro Jaraeff Christo sobre o vale Hogback, no Colorado, e lá ficando como um pássaro flexível a levantar vôo na paisagem. E Hans Haacke mandaria a escultura pelos ares, literalmente, em 1967, com a sua Sky Line (Linha Celeste) - 100 balões cheios de hélio alinhavados por um fio formando um colar de pérolas dançantes nos céus do Central Park, em Nova York. (pág. 51-52)

............... Desestetizada, desdefinida, desmaterializada, a obra sumiu, mas sobrou o artista. O happening (acontecimento) é a intervenção - preparada ou de surpresa - do artista no cotidiano, não através da obra, mas fazendo da intervenção uma obra. É o máximo de fusão arte/vida como querem os pós-modernos, pois utiliza a rua, a galeria, pessoas e objetos que estão na própria realidade para desencadear um acontecimento criativo. É uma provocação com o público, mas amplia sua percepção do mundo onde vive. Essa prática se difundiu pelo mundo desde os anos 60, inclusive no bloco socialista. Irromper vestido como Batman numa galeria e ali soltar pássaros e borboletas, tocando uma sirene, é um happening. Haverá riso, pânico e choque emocional no público.

A performance (desempenho) é uma variedade do happening. Ela atrai a atenção para o artista e os materiais que ele utiliza para chocar o público sob algum aspecto. O alemão Joseph Beuys, escultor ligado em materiais pobres como a banha, é um teórico da arte sem limites. Sua tempestuosa performance Como Explicar Quadros a uma Lebre Morta realizou-se em 1965 em Dusseldorf. Beuys, o rosto coberto com banha e pó dourado, ficou horas e horas falando com uma lebre morta no colo. O grupo vienense formado por Hermann Nitsch também manipulou animais mortos, cujas vísceras eram arrancadas e mostradas ao público. Schwarzkogler, membro do grupo, matou-se em 1969 em nome da arte, mediante sucessivos atos de auto-mutilação.

Igual ao happening e à performance, a arte processual quer ampliar ao infinito os domínios da arte pela desdefinição. Objetos, animais, jornais, postais, alimentos, máquinas, fotos - tudo pode dar arte. Qualquer processo que intervenha sobre a realidade para modificá-la, desequilibrá-la de modo inventivo e gratuito é arte. Desenhar com giz uma piroquinha pequenininha sobre a enorme cueca Zorba num outdoor é arte processual. Escrever um poema numa vaca que pasta, como fez Herman Damen na Holanda, também é. Idem, idem, para o pão-poema-processo, com dois metros de comprimento, comido em praça pública no Recife, em 1970, por cinco mil pessoas. (pág. 52-55)

O livro "O nome da Rosa" e o Pós-Modernismo

........... Estados Unidos e França desde os anos 60 e, mais recentemente, a Itália são os centros irradiadores da literatura pós-moderna, representada sobretudo pela ficção. Nosso urbanóide, lá atrás, lia O Nome da Rosa, do italiano Umberto Eco. É um romance histórico, escrito como narrativa policial, situado na Itália medieval, contando os crimes, a violência sexual e a destruição de um mosteiro em 1327. É um livro sobre outro livro - a parte perdida da Poética (inacabada), do filósofo Aristóteles. Muita coisa é pós-moderna aí. Uma delas bem antimoderna: a volta ao passado. Outra: o recurso a uma forma antiga e gasta - o romance histórico. E o uso da narrativa policial - um gênero de massa. A intertextualidade, tanto pela referência a essas formas literárias, quanto pelo fato de ser um livro sobre outro livro (a Poética ). O ecletismo, ao misturar o sério histórico com o documental) com o divertimento (o policial, a fantasia). E trata-se de uma paródia, um pastiche do romance histórico, pois não faz sentido escrever-se hoje, a sério, um romance sobre a Idade Média. Só por jogo e divertimento.

Mas há outro elemento pós-moderno importantíssimo em O Nome da Rosa. É a progressiva desordem reinante no mosteiro (um lugar fechado, um sistema isolado que só pode receber vida de fora), até culminar na sua destruição. Isto espelha a situação atual: decadência de valores, ausência de sentido para a vida e a História, ameaça de destruição atômica. Mas reflete também uma idéia que está no coração da pós-modernidade: a entropia. Entropia significa a perda crescente de energia pelo Universo (um sistema isolado, pois além só há o nada e ele não tem, assim, como receber energia de fora), até sua desagregação no caos, na máxima desordem. Essa idéia migrou da física e foi pousar na sociologia. Nas sociedades atuais, tudo parece rolar para a confusão, sem valores sólidos, sem ordem que segure a barra.

Pois bem, a literatura pós-moderna trata desse bode entrópico, seja na forma (a destruição do romance), seja no conteúdo (a destruição do mundo e dos valores), mas sem desespero: com riso ou frieza. Tanto a metaficção americana, quanto o nouveau roman francês vêm promovendo esse quebra- quebra. São os anartistas do nuliverso (anarquistas + artistas do nulo + universo)........ (pág. 59)

O novo romance e o pós-modernismo

...... Faz 30 anos que o nouveau roman (novo romance) vem tentando matar o romance. Para isso ele recusa o realismo (o parecer verdadeiro), recusa o enredo com começo, meio e fim, o herói metido em aventuras, o retrato psicológico e social, a mensagem política ou moral. Contra o modernismo, ele abandona o psicologismo e a literatura como conhecimento superior. Por outro lado, ele quer valorizar os objetos, que são analisados pelo olhar como por uma câmara cinematográfica. Usa vários narradores simultaneamente. Mistura realidade, sonho, delírio, para criar clima de incerteza. Embaralhada a ordem espacial e temporal dos acontecimentos, numa extrema fragmentação. E privilegia o texto, o ato de escrever. Com isso, os cerebráticos franceses, porque existe aqui muito de masturbação mental, pretendem dizer que a realidade atual é impenetrável, desordenada, um verdadeiro bode entrópico.

Nathalie Sarraute, Michel Butor, Alain Robe-Grillet, Phillipe Sollers, Jean Pierre Faye e Maurice Roche são os nomes significativos dessa vertente da literature pós-moderna, que realça sobretudo a técnica de construção/destruição do romance, em detrimento do conteúdo........ (pág. 62)

Em La Maison de Rendez-Vous (no Brasil, Encontro em Hon-Kong), Robe-Grillet começa e recomeça indefinidamente a contar sempre a mesma história: um tiro num prostíbulo onde, num número de streap-tease, um cachorro vai rasgando as roupas de uma adolescente. Tudo é dúvida e fragmentação. Não entendemos o que veio antes ou depois, os fatos se modificam a cada versão, e não sabemos quem os relata: se Manneret, que muda de nome e aparência ao longo do texto; se Lady Ava, a dona do prostíbulo; se é o papo entre dois desconhecidos num bar. Robe-Grillet usou o mesmo estilo no filme O Ano Passado em Mariembad para mostrar o seguinte: o real não existe, ele é sempre a versão fragmentária, parcial, de alguém. Temos aqui, também, a famosa desreferencialização dor real pós- moderna, junto com a

paródia do romance policial, cujas características - realismo, aventura, interesse, desvendamento do crime - o autor quer destruir. (pág. 63)

........ No Brasil, onde o modernismo foi um movimento cultural muito forte e influencia a literatura até hoje, o pós-modernismo apresenta na ficção, aqui e ali, apenas traços superficiais. Osman Lins, em Avalovara , está muito próximo do nouveau roman por seu cerebralismo. Em A Festa, Ivan Ângelo montou um quebra-cabeças político, social, cronológico, dos mais intrigantes. Rubem Fonseca, em O Cobrador, dá um tratamento hiper-realista (ele carrega nas tintas) ao sexo e à violência. Os três, no entanto, se acham demasiado presos ao realismo, ao compromisso social, enquanto o pós-modernismo exige fantasia, exagero, humor, carnaval, paródia, destruição. Victor Giudice, com seu fantasioso romance Bolero, e Sérgio Sant'Anna, nos contos com pessoas reais de O Concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro, aproxima-se do pós-moderno, embora por caminhos diversos.

Foi a poesia que, nos tristes e repressivos anos 70, rompeu o compromisso com a realidade, com o intelectualismo e o hermetismo modernistas, e partiu para ser marginal, diluidora, anticultural, pós- moderna. Brotaram a poesia do mimeógrafo, a lixeratura, o poema pornô, com Chacal, Samaral, Cacaso, Fred, Chico Alvin, Leila Mícolis, Ana Cristina César. São poemas espontâneos, mal-acabados, irônicos, em linguagem coloquial, que falam do mundo imediato do próprio poeta, zombam da cultura, escarnecem a própria literatura. Seu campo é a banalidade cotidiana, o corpo, o consumo, mas com um estilo solto, frio, frívolo, sem paixão nem grandes imagens.

Ainda na poesia, mais duas correntes cruzaram a fronteira pós-moderna: o poema-processo e a arte postal. Mobilizando o espaço visual da página, régua e compasso na mão, os poetas-processo montam painéis com palavras e todo tipo de imagem: foto, diagramas, rótulos, anúncios. Para eles, o poema precisa assimilar a imagem, a publicidade, os signos do cotidiano, abolindo o verso. Um cheque ouro do Banco do Brasil, carimbado com a suástica nazista, era um poema processo na época da ditadura. Wlademir Dias Pino, Joaquim Branco, Ronaldo Werneck e Álvaro Sá formam a linha de frente dessa corrente. A arte postal é basicamente o poema-processo enviado pelo correio. À margem do livro e das editoras, utiliza o postal, o cartaz, o carimbo, a xerox. O poema consiste em criações em cima de

mensagens já veiculadas. O resultado é quase sempre humor, ironia, mas em tom frio, pós-moderno. (pág. 65)

Pós modernismo e discursos globais

O pós-modernismo desembarcou na filosofia em fins dos anos 60 com uma mensagem demolidora na mochila: a Desconstrução do discurso filosófico ocidental, da maneira como o Ocidente pensa (e age). Discurso é fala, é o dito. Do grego Platão, no século 4 a.C., até o francês Sartre em nossos dias, os filósofos ocidentais disseram as coisas de determinado modo, com certas atitudes e pressupostos inconscientes. Desconstruir o discurso não é destruí-lo, nem mostrar como foi construído, mas pôr a nu o não-dito por trás do que foi dito, buscar o silenciado (reprimido) sob o que foi falado. Com os pensadores pós-modernos, a filosofia e a própria cultura ocidental caíram sob um fogo cerrado.

Rose, lá na fabulazinha, escrevia uma tese: Em Cena, a Decadência . O pós-modernismo está associado à decadência das grandes idéias, valores e instituições ocidentais - Deus, Ser, Razão, Sentido, Verdade, Totalidade, Ciência, Sujeito, Consciência, Produção, Estado, Revolução, Família. Pela desconstrução, a filosofia atual é uma reflexão sobre ou uma aceleração dessa queda no niilismo. Niilismo - da palavra latina nihil = nada - quer dizer desejo de nada, morte em vida, falta de valores para agir, descrença em um sentido para a existência. A desconstrução pretende revelar o que está por trás desses ideais maiúsculos, agora abalados, da cultura ocidental.

Desde a Grécia antiga, as filosofias são discursos globais, totalizantes, que procuram os primeiros princípios e os fins últimos para explicar ordenadamente o Universo, a Natureza, o Homem. A pós- modernidade entrou nessa: ela é a valsa do adeus ou o declínio das grandes

filosofias explicativas, dos grandes textos esperançosos como o cristianismo (e sua fé na salvação), o Iluminismo (com sua crença na tecnociência e no progresso), o marxismo (com sua aposta numa sociedade comunista). Hoje, os discursos globais e totalizantes quase não atraem ninguém. Dá-se um adeus às ilusões. (pág. 71-72)

Mas como é possível o niilismo irracional - a decadência - brotar nas sociedades pós-industriais dominadas pela tecnociência, pela programação, que são a própria racionalidade na produção, no trabalho, na burocracia e até no cotidiano? Basta olhar para o mundo atual.

O choque entre a racionalidade produtiva e os valores morais e sociais já se esboçava no mundo moderno, o industrial. Na atualidade pós-moderna, ele ficou agudo, bandeiríssimo, porque a tecnociência invade o cotidiano com mil artefatos e serviços, mas não oferece nenhum valor moral além do hedonismo consumista. Ao mesmo tempo, tais sociedades fabricaram fantasmas alarmantes como a ameaça nuclear, o desastre ecológico, o terrorismo, a crise econômica, a corrupção política, os gastos militares, a neurose urbana, a insegurança psicológica. Elas têm meios racionais, mas só perseguem fins irracionais: lucro e poder.

Ora, o barato de alguns (não todos) filósofos pós-modernos é que eles não querem restaurar os valores antigos, mas desejam revelar sua falsidade e sua responsabilidade nos problemas atuais. Para isso, eles lutam em duas frentes:

1)Desconstrução dos princípios e concepções do pensamento ocidental __ Razão, Sujeito, Ordem, Estado, Sociedade etc. - promovendo a crítica da tecnociência e seu casamento com o poder político e econômico nas sociedades avançadas, que resultou no tão amaldiçoado Sistema.

2)Desenvolvimento e valorização de temas antes considerados menores ou marginais em filosofia: desejo, loucura, sexualidade, linguagem, poesia, sociedades primitivas, jogo, cotidiano - elementos que abrem novas perspectivas para a liberação individual e aceleram a decadência dos valores ocidentais.

Para essa guerra, filósofos pós-modernos, tais como Jacques Derrida, Gilles Deleuze, François Lyotard, Jean Baudrillard, foram buscar armas em vários arsenais. Num pensador maldito - Nietzsche - o primeiro a desconstruir os valores ocidentais; na Semiologia, pois atacam as sociedades pós-industriais baseadas na informação, isto é, no signo; e no ecletismo Marx com Freud, fundindo aspectos pouco conhecidos de suas obras. Esse pim-pam-pum de idéias no fliperama digital do nada é interessante. (pág. 73-74)

Pós modernismo e pós-estruturalismo

Na trilha aberta por Nietzsche, o filósofo Jacques Derrida, que inventou a palavra desconstrução, atacou a besta chamada Logocentrismo ocidental. O Ocidente, segundo ele, só sabe pensar pelo Logos, que em grego significa palavra, razão, espírito.

Paremos aqui e voltemos a fita um pouco. Derrida é pós-moderno porque pós-estruturalista. O estruturalismo nas ciências humanas é a corrente que, nos últimos 30 anos, recebeu grande impulso na Lingüística e na Semiologia. Ele analisa os fenômenos sociais e humanos como se fossem textos, discursos. A moda, o casamento, o sonho podem ser "lidos" como se fossem "frases" de uma língua, signos com um significante e um significado (no sonho as imagens são significantes cujo significado o analista descobre). Pois bem, na Antropologia, na Psicanálise, na Sociologia, o estruturalismo explicou cientificamente muita coisa no homem que antes era privilégio da Filosofia comentar. Assim, a Filosofia ficou meio desempregada, meio boca inútil. Após o estruturalismo, só lhe restou voltar-se sobre si mesma, pensar a sua própria história, investigar o seu própria discurso.

É aí que entra Derrida com a desonstrução do Logocentrismo. No centro da cultura e da filosofia ocidentais está o Logos, isto é, o espírito racional que fala, discursa. E como? O Logos é a razão e a palavra falada, no sujeito humano, transformando as coisas em conceitos universais. O conceito cadeira, por exemplo, expresso pela palavra "cadeira", produz um modelo universal para esse objeto, apagando as diferenças entre as cadeiras reais (de pau, de ferro, de palha). O conceito torna idênticas todas as cadeiras porque elimina as diferenças

entre elas. O Logocentrismo acaba com as diferenças entre as coisas reais ao reduzi-las à identidade no conceito.

Mas isso não ficou apenas nas modestas cadeiras. É um jeito ocidental de pensar e agir. Os jesuítas convertiam as diferentes tribos brasileiras a uma idêntica religião: o cristianismo. Os brancos europeus submeteram vários povos, de diferentes raças, a uma idêntica economia: o capitalismo. A linha de montagem impôs a diferentes personalidades gestos idênticos. O ocidente sempre se deu mal com as diferenças: a do índio, do negro, do louco, do homossexual, da criança, da poesia (expulsa da República por Platão).

Ora, embutida no Logos, Derrida descobre uma cadeia desses grandes conceitos universais que atravessa toda a cultura ocidental. Logos é Espírito, que dá em Razão, que faz Ciência, que promove a Consciência, que impõe a Lei, que estabelece a Ordem, que organiza a Produção. No entanto, a cadeia das maiúsculas só se promoveu reprimido e silenciando como inferiores os termos de uma outra cadeia: corpo/ emoção/ poesia/ inconsciente/ desejo/ acaso/ invenção. Além de matar as diferenças em identidades, o Logos comete uma segunda violência: hierarquiza esses elementos, valoriza, torna uns superiores aos outros. Os primeiros - maiúsculos, superiores - reduzem o mundo a identidades, são sólidos, centrais, racionais, duradouros, programáveis. Os outros - minúsculos, inferiores - pulverizam o mundo em diferenças, são fugidios, sem centro, irracionais, breves, imprevisíveis.

Em guerra com a tradição ocidental, ao desconstruir seu discurso para trazer à tona o reprimido, Derrida e outros filósofos pós-modernos querem injetar vida nova nas diferenças contra a identidade, na desordem contra a hierarquia, na poesia contra a lógica. Eles pensam contra as manias mentais ocidentais, um pensar sem centro e sem fim, mais para a literatura que para a filosofia. Vinculado a pequenas causas, é um meditar minoritário tendo como objeto o corpo, a prostituição, a loucura, o cotidiano, contra o Espírito, a Família, a Normalidade e a Grande Revolução Final. (pág. 79-84)

A vida cotidiana e o pós modernismo

Nestes anos 80 o pós-modernismo chegou aos jornais e revistas, caiu na boca da massa. Um novo estilo de vida com modismos e idéias, gostos e atitudes nunca dantes badalados, em geral coloridos pela extravagância e o humor (vide o Planeta Diário), brota por toda parte. Micro, videogame, vídeo-bar, FM, moda eclética, maquiagem pesada, new wave, ecologia, pacifismo, esportivismo, pornô, astrologia, terapias, apatia social e sentimento de vazio - estes elementos povoam a galáxia cotidiana

pós-moderna, que gira em torno de um só eixo: o indivíduo em suas três apoteoses - consumista, hedonista, narcisista.

O indivíduo pós-moderno consome como um jogo personalizado bens e serviços, do disco a laser ao horóscopo por telefone. O hedonismo - moral do prazer (não de valores) buscada na satisfação aqui e agora - é sua filosofia portátil. E a paixão por si mesmo, a glamurização da sua auto-imagem pelo cuidado com a aparência e a informação pessoal, o entregam a um narcisismo militante. É o neo- individualsmo decorado pelo narcisismo.

Enquanto estilo extremamente individualista, o pós-moderno prolonga o jeito de ser liberado e imaginoso vivido na boêmia pelas vanguardas artísticas modernistas. Ele é hoje a democratização, no cotidiano, daquilo que as vanguardas pretendiam com a arte: expressão pessoal, expansão da experiência, vida privada. (Isto parece se chocar com a sociedade programada, mas logo veremos como a questão é complicada e ambígua.)

Em contraste com o individualismo moderno, forjado pelo liberalismo econômico no século XVIII, e que era burguês, progressista, tenso, o neo-individualismo atual é consumista e descontraído, mantendo relações muito especiais com a sociedade pós-industrial, sua mãe dileta. Aparentemente ele consagra o Sistema, mas também lhe cria problemas. De que maneira?

As sociedades pós-industriais, planejadas pela tecnociência, programam a vida social nos seus menores detalhes, pois nelas tudo é mercadoria paga a uma empresa privada ou estatal, seja um telex em banco ou uma hidromassagem. Sendo economias muito ricas, que têm como única meta a elevação constante do nível de vida, elas deixam ao indivíduo a opção de consumir entre uma infinidade de artigos, mas não a opção de não consumir.

Além disso, há o apelo constante do novo. Viver é estar de mudança para a próxima novidade. Com uma gama enorme de bens e serviços, para todas as faixas e gostos, a seu alcance, só resta ao indivíduo escolher entre eles e combiná-los para marcar fortemente sua individualidade. Embora a produção seja massiva, o consumo é personalizado (vide o cheque "personalizado"). Assim, o sistema propõe, o indivíduo dispõe. É o pleno conformismo e o sistema parece triunfar de cabo a rabo.

Mas sua vitória não é tranqüila. Têm surgido contra o sistema efeitos bumerangues tipicamente pós- modernos. O individualismo exacerbado está conduzindo à desmobilização e à despolitização das sociedades avançadas. Saturada de informação e serviços, a massa começa a dar uma banana para as coisas públicas. Nascem aqui a famosa indiferença, o discutido desencanto das massas ante a sociedade tecnificada e informatizada. É a sua colorida apatia frente aos grandes problemas sociais e humanos.

Ora, com mil demônios, não é precisamente isso que interessa ao sistema, todo mundo consumindo e conformado? Até certo ponto, sim. Mas daí em diante é o tecido social que começa a se descoser, a se fazer em fiapos. O consumo apenas não segura a barra. Eis por que, para se legitimar, para se garantir, além da eficiência econômica, o sistema precisa manter em cena velhos valores e instituições como Pátria, Democracia, História, Família, Religião, Ética do trabalho, ainda que eles sejam puros simulacros. Prova disso são os discursos ultranacionalóides de Reagan (a Reaganóia) e a campanha na França para elevar a taxa de natalidade. Mas a moçada está resistindo.

Extravagantes e apáticos, vivendo em clip (ritmo apressado), os indivíduos que formam a massa pós- moderna estão criando uma paisagem social diferente daquela desenhada pela massa moderna. Vejamos que traços a desmobilização e a despolitização vêm esboçando nas sociedades pós-industriais.

Até há pouco a massa moderna era industrial, proletária, com idéias e padrões rígidos. Procurava dar um sentido à História e lutava em bloco por melhores condições de vida e pelo poder político. Crente no futuro, mobilizava-se para grandes metas através de sindicatos e partidos ou apelos nacionais. Sua participação era profunda (basta lembrar as duas guerras mundiais).

A massa pós-moderna, no entanto, é consumista, classe média, flexível nas idéias e nos costumes. Vive no conformismo em nações sem ideais e acha-se seduzida e atomizada (fragmentada) pelos mass media, querendo o espetáculo com bens e serviços no lugar do poder. Participa, sem envolvimento profundo, de pequenas causas inseridas no cotidiano - associações de bairro, defesa do consumidor, minorias raciais e sexuais, ecologia.

A esta mudança os sociólogos estão chamando deserção do social. É como tornar deserta uma região. Pela desmobilização e a despolitização, o neo-individualismo pós-moderno, que tende ao descompromisso, ao não tenho nada com isso, vem esvaziando as instituições sociais. História, política, ideologia, trabalho - instituições antes postas em xeque apenas pela vanguarda artística - já não orientam o comportamento individual, e seu enfraquecimento é contínuo nos países avançados. A deserção é uma sacação nova da massa. Ela não é orientada nem surge conscientemente, como também não visa à tomada do poder, mas pode abalar uma sociedade, ao afrouxar os laços sociais. Há dados para se avaliar esse esvaziamento, como igualmente há novas atitudes substituindo as tradicionais.

Deserção da História: Não houve desertores americanos na guerra da Coréia em 1950; na do Vietnã, finda em 1975, houve aos montes. A massa moderna acreditava que a história (e seus países) marchavam pela revolução ou pelo progresso para situações mais democráticas e felizes. Esse otimismo não existe na massa pós-moderna, que perdeu o senso de continuidade histórica. Ela vive sem as tradições do passado e sem um projeto de futuro. Só o presente

conta. Pátria, heróis e mitos colam muito pouco num tempo programado pela tecnologia. Além disso, o pesadelo nuclear, as crises econômicas e a velocidade de mudança estão armando, para o término do século, um clima apocalíptico, de fim da História.

Por outro lado, em vez de crer e atuar na História, os indivíduos estão se concentrando em si mesmos, hiperprivatizando suas vidas. Eles investem é em saúde, informação, lazer, aprimoramento pessoal. A massa moderna queria a História quente, combativa; a pós-moderna quer esfriar a História, congelá-la numa sucessão de instantes isolados e sem rumo. Veja, não houve uma só guerra entre países capitalistas avançados de 1945 para cá.

Deserção do político e do ideológico: Nos EUA, nas últimas eleições presidenciais, entre 40 e 45% dos eleitores não votaram. As greves políticas praticamente cessaram na Europa capitalista desde 1968. As eleições dependem mais da performance do candidato nos mass media que das suas idéias. E ninguém no planeta acredita que políticos e tecnocratas apinhados no Estado representam o povo ou possuem altos ideais. O trambique político é demasiado transparente. No plano ideológico, nos anos 70 o eurocomunismo abrandou a carranca do comunismo e as democracias sociais européias frearam a fúria capitalista. Ou seja, posições rígidas __ o comunista, o fascista, o capitalismo selvagem __ cedem lugar a posições flexíveis, pragmáticas, em busca da eficácia a curto prazo. Até a luta sindical perde vigor: na França, por exemplo, o índice de trabalhadores sindicalizados caiu de 50% em 1955 para 25% em 1985.

Essa descrença no político faz a massa pós-moderna dar as costas para as grandes causas. Ela cobra do sistema eficiência na administração e nos serviços tais como educação, transportes, saúde, mostrando- se essencialmente pragmática e não ideológica. Se a modernidade teve intensa mobilização política (duas guerras mundiais, revoluções, guerras anticoloniais), a pós-modernidade se interessa antes pelo transpolítico: liberação sexual, feminismo, educação permissiva, questões vividas no dia-a-dia. Normalmente o indivíduo pós-moderno evita a militância fogosa e disciplinada. Ele é frio, prefere movimentos com fins práticos, nos quais a participação é flutuante e personalizada. Nada de lutas prolongadas ou patrulhamento ideológico. Ele vai na onda, nas subculturas punk, metaleira, yuppie. Deserção do trabalho: A massa pós-moderna não tem ilusões: sabe que trabalhará sempre para um sistema, capitalista, socialista, ou marciano. Por isso ele não crê no valor moral do trabalho nem vê na profissão a única via para a auto-realização. Inclinada ao lazer, ela falta muito ao trabalho (absenteísmo). A França levou dez anos para situar seu índice de absenteísmo em pouco abaixo dos 8,3 atingidos em 1974. E há filósofos defendendo a improdutividade.

Concentrado no setor de serviços (lojas, bancos, escritórios, administração, laboratórios), o trabalho pós-moderno é um jogo comunicativo entre pessoas. Sem a tensão da linha de montagem moderna, pede antes o sorriso, a descontração (a moça do Bradesco, por exemplo). É mais leve. Mesmo assim, as pessoas vivem correndo para o lazer, e não reivindicam tanto melhores salários como desejam uma semana de quatro dias. Os esportes individuais - asa delta, wind-surf, tênis, skate, ski, atletismo - disputam com as viagens, a informação, o aprendizado de línguas estrangeiras e de instrumentos musicais, a primazia no uso do tempo livre.

Deserção na família: Há bom tempo a família não é o foco da existência individual. Escola e mass

media predominam na formação da personalidade. Sai-se cedo de casa, casa-se tarde, descasa-se com facilidade e, sobretudo, reproduz-se pouco. Nos EUA, pessoas morando sozinhas, casais sem filhos ou coabitando simplesmente somam 57% das casas. O lar afunda.

No lugar da família guardiã moral, apoio psicológico, a pós-maternidade propõe ligações abertas tipo amizade colorida. O swing é experiência válida e a educação evolui para o pessimismo (ninguém expulsa a filha de casa só porque ela deu uma bimbadinha com o namorado). A pílula faz recuar o poder paterno. O rei pênis e seus dois assessores impõem

menos o sexo genital ante a vaga homossexual e transexual em ascensão. Moral branda, amor descontraído. Sai o tango, entra o rock "amor sem preconceitos, sexo total".

Deserção da religião: O pós-modernismo, já se disse, é o túmulo da fé. As religiões antigas cedem ante uma porção de pequenas seitas sem futuro, os indivíduos procuram credos menos coletivos, mais personalizados (meditações, zenbudismo, yoga, esoterismo, astrologia), e a transcendência divina acabará fechando por falta de clientes: 45% dos franceses entre 15 e 35 anos não acreditam em Deus.

É que o homem pós-moderno não é religioso, é psicológico. Pensa mais na expansão da mente que na salvação da alma. Há toda uma cultura psi fazendo a cabeça da moçada: psicanálise, psicodrama, gestalt, bioenergética, biodança, grito primal e por aí vai. Para não falar no dilúvio de bolinhas e alucinógenos que rola. Nisso tudo, o bom é que a cultura religiosa era culpabilizante, enquanto a psi é libertadora. Ao sujeito pós-moderno interessa um ego sem fronteiras, não uma consciência vigilante. (pág. 86-94)

Saturação da informação e pós modernismo

Vimos que, desertos, enfraquecidos, os valores e instituições tradicionais, ainda conservados pela modernidade burguesa, vêm perdendo terreno na moldagem, motivação e controle dos indivíduos nas sociedades avançadas. Que mecanismos, então, exercem esses papéis? O consumo, os mass media e a tecnociência, claro. A resposta é boa mas parece de polichinelo. Não diz por que nem como. Vamos primeiro ao por quê.

As sociedades pós-industriais vivem saturadas pela informação. Vai-se ao consumo pela informação publicitária, consome-se informação no design, na embalagem, devora-se informação nos mass media e na parafernália ofertada pela tecnociência (micro, vídeo, etc.). O sujeito se converte assim num terminal de informação. Mas um terminal isolado de outros terminais, pois as mensagens não se destinam a um público reunido, mas a um público disperso (cada um em sua casa, seu carro, seu micro). Eis por que a massa pós-moderna é atomizada (ultrafragmentada). Enquanto a massa moderna era um bloco movido por interesses de classe e por idéias, na pós-modernidade ela é uma nebulosa de indivíduos atomizados, recebendo informação em separado. Ora, para motivar e controlar sujeitos atomizados, a autoridade e a polícia são secundárias. Basta bombardeá-los com mensagens que excitem seus desejos.

Agora vamos ao como. De qualquer maneira o consumo, os mass media e a tecnociência modelam, motivam e controlam a nebulosa pós-moderna pelo bombardeio informacional? As mensagens são lançadas ao acaso, mas não são boladas de qualquer jeito. Não apenas representando o real, mas sendo hoje o real, as mensagens são criadas visando à espetacularização da vida, à simulação do real e à sedução do sujeito. Assim os compreende o sociólogo francês Jean Baudrillard.

A espetacularização converte a vida em um show contínuo e as pessoas em espectadores permanentes. Antigamente os espetáculos - paradas, festas, jogos - eram ocasionais e à parte. Agora, a começar pela arquitetura monumental, eles reinam em pleno cotidiano. TV, vitrines, revistas, moda, ruas, na sociedade de consumo, geram um fluxo espetacular cuja função é embelezar e magnificar o dia-a-dia pelas cores e formas envolventes, o tamanho e o movimento de impacto. Tudo fica "incrível", "fantástico", "sensacional".

O espectador é o que vê, mas também o que espera por novas imagens atraentes e fragmentárias para consumir. Ele se acha mergulhado na cultura blip - cultura do fragmento informacional, cintilações no vídeo. Assim, por um lado a espetacularização motiva e controla a nebulosa de espectadores mantendo- a continuamente à espera de novas imagens, bens e serviços; por outro, pela estetização, glamuriza e alivia a banalidade cotidiana. Procuramos nas ruas, nos rostos, o farto colorido das revistas e da TV. Como isto é possível? Pela simulação, pelos simulacros. Em outras épocas, os simulacros (mapas,

maquetes, estátuas, quadros) foram instrumentos ou obras de arte. Na pós-modernidade eles formam a própria ambiência diária. Materiais e processos simulantes trazidos pela

tecnociência reproduzem com mágica perfeição o real. A fórmica simula o jacarandá. Um flavourizante põe sabor morango no chocolate. Batalhas siderais se travam no videogame e sintetizadores programáveis tocam flauta. O silicone recicla marmanjos em gatonas (vide La Close), enquanto vaginas eletro-masturbantes fabricam a cópula - a um! Pontos coloridos na TV avivam o mundo, ao mesmo tempo que computadores simulam na Terra pousos lunares.

Vimos lá trás certa mamãe preferindo mostrar a filha na foto (no simulacro) a exibir a filha real. Temos aí a operação básica da pós-modernidade: a transformação da realidade em signo. Simulacro = signo. A fórmica é signo do jacarandá, o Monza na TV é signo do Monza na estrada. Mas e daí? Daí que, se o real é duro, intratável, o simulacro é dócil e maleável o suficiente para permitir a criação de uma hiper- realidade. Intensificado, estetizado, o simulacro faz o real parecer mais real, dá-lhe uma aparência desejável. A fórmica é mais lisa e lustrosa que o jacarandá, o Monza na TV surge mais ágil e nobre que na estrada. Esse hiper, esse mais agregado pela tecnociência aos simulacros resulta em espetáculo e em desreferencialização das coisas: temos mesa de jacarandá sem jacarandá, concerto de flauta sem flauta. Parte-se então para se desejar os objetos segundo o código dos simulacros. É comum as donas-de-casa, ao prepararem um pudim industrializado, se sentirem frustradas porque ele não fica brilhante como o pudim da embalagem. Foi-se tempo em que havia separação clara entre real e imaginário, signo e coisa. Vive-se agora entre simulacros em espetáculo para seduzir o desejo.

A sedução pós-moderna diz de mil maneiras ao indivíduo: libere seus desejos, há bens e serviços só para você. A modernidade, produtora de energia, era dominada pela força (máquina, armas, disciplina, polícia). A pós-modernidade, consumidora de informação, motiva e controla basicamente pela sedução (personalização, comunicação, erotismo, moda, humor).

Seduzir quer dizer atrair, encantar artificialmente. O cotidiano, hoje, é o espaço para o envio de mensagens encantatórias destinadas a fisgar o desejo e a fantasia, mediante a promessa da personalização exclusiva. Self-service para você escolher. Música 24 horas na FM para seu deleite. Esportes e massagens para seu corpo. À personalização aliam-se o erotismo, o humor e a moda, que não deixam espaços mortos no dia-a-dia. O teste é permanente. O erotismo vai dos anúncios ao surto pornô, passando pela cultura psi e seu convite ao desrecalque. O humor, outra sedução massiva pós- moderna, sabor dos tempos, descontrai e desdramatiza o social. Na arte moderna, ria-se com o absurdo, assunto sério. Atualmente, o lance é rir sem tensão, descrispar-se, desencucar-se. Slogans e manchetes recorrem ao trocadilho, à malícia (O fino que satisfaz). Cínico, vadio, Snoopy circula pelos jornais do mundo. Lojas recebem nomes gozados (Lelé da Cuca) e camisetas levam ditos divertidos. Sem calor, videogames e fliperamas forçam o relax. É normal locutores de rádio brincarem com os ouvintes e na TV noticiários são temperados com pitadas irônicas. Esse humor não é agressivo nem crítico. Busca um bem-estar cool (frio). "Não-esquenta", "fica frio" dão o tom pós-moderno.

Porém o mais doido e acelerado cavalo de batalha em ação é a moda. Moda e modismos em alta rotatividade ditam o ritmo social. Oposta ao bom gosto moderno, com seu corte solene, alta costura, hierarquias, a moda pós-moderna vai de extravagância e liberdade combinatória, com humor na fantasia. O casual comanda o mix total: camisão com colete, paletó com minissaia, gravata com tênis. O look deve ser jovem e sexy, a invenção, personalizada e informal. Jorrando cores, a moda anima a festa mercadológica que é o cotidiano, e para isso promove a convivência de todos os estilos: retro com futurista, esporte com passeio, lã azul com lycra laranja. E faz alusão à vestimenta oriental, militar, circense. Também danças, gírias, produtos, complementos - tudo vai e volta sob a batuta do novo. A função da moda é manter o sujeito mergulhado no presente, e, para que ele tenha como horizonte apenas o cotidiano, não pára de botar brilho no vazio. Como dizia o Gil: "Quanto mais purpurina, melhor".

A essa altura, inteligente, o leitor deve estar pensando: mas o ambiente pós-moderno é pura ilusão! Quase. Empresas e tecnocratas levam uma grana alta! Levam. É puro trambique e mistificação em cima de gente alienada! Seria. Para que fosse, seria preciso explicar um detalhe desagradável: a adesão maciça dos indivíduos ao consumo. E não quaisquer

indivíduos, mas gente escolarizada, bem- informada, pagando altos impostos. Não dá para chamá-los de alienados porque, como vimos nas várias deserções, eles não querem o poder. Querem espetáculos e bons serviços. E, repetindo, sabem que no frigir dos ovos terão de trabalhar sem estar no poder em qualquer regime, dada a complexidade das

sociedades atuais. O problema é outro. A riqueza pós-industrial é em grande parte financiada pelos países em desenvolvimento, pois o capitalismo avançado se fez multinacional. Vem para cá a indústria pesada e suja (aço, automóveis), ficam lá as leves e limpas (eletrônica, comunicações). Seu controle social pode ser soft (bando, pela sedução), mas o nosso tem de ser hard (moderno, duro, policial, na base do cassetete).

Individualismo exacerbado e pós modernismo

Se o neo-individualismo conduziu a massa fria, a nebulosa atomizada à desmobilização, o que está acontecendo ao indivíduo pós-moderno? Ele é o narcisismo acossado pela dessubstancialização do sujeito. Vamos destrinchar isso.

Em 22/04/84, o jornal Le Monde publicou o retrato falado do novo egoísta em ação. "Pragmatismo, cinismo. Preocupações a curto prazo. Vida privada e lazer individual. Sem religião, apolítico, amoral, naturista. Narcisista. Na pós-modernidade, o narcisismo coincide com a deserção do indivíduo cidadão, que não mais adere ao mitos e ideais de sua sociedade."

Esse esboço contraria da cabeça aos pés o indivíduo burguês e moderno. Antes, porém, uma banda filosófica. No ocidente, o sujeito humano, em oposição ao objeto, era até há pouco o senhor absoluto do conhecimento racional, da liberdade, da criação. Há décadas, no entanto, as Ciências Humanas vieram borrar essa imagem, ao descobrir seus condicionamentos e limites. A psicanálise revelou-o escravo do seu inconsciente irracional. O marxismo deu-o como escravo da sua classe social e um átomo insignificante na massa. E a lingüística disse que seu pensamento criador era na verdade escravo das palavras. Falou-se então até na "morte do sujeito".

Assim o indivíduo burguês, que supunha uma identidade fixa e uma liberdade total, aferrado ao dinheiro como capital tanto quanto a princípios morais e a valores sociais, esse sujeito dançou. Os modernos, na arte, começaram a caricaturar seu retrato, a expor sua falsidade. Os indivíduos pós- modernos, na prática, vêm tendendo ao máximo à sua dissolução.

Na ambiência pós-moderna, espetáculo, simulação, sedução, constituem jogos com signos. A esse universo informacional, sem peso e desreferencializado, só pode corresponder um sujeito informatizado, leve e sem conteúdo. É o Narciso dessubstancializado. Narcisismo (amor desmedido pela própria imagem) e dessubstancialização falta de identidade, sentimento de vazio) resumem o sujeito pós-moderno.

Vimos na fabulazinha que o urbanóide pós-moderno podia ser uma criança radiosa, aquela dedicada ao hedonismo consumista, cultuando narcisicamente seu ego. O micro facilita-lhe a vida. Mil serviços trabalham sua aparência. A cultura psi lhe dá massagens mentais. Sempre na moda, seu gosto é eclético: vai de ET a Fassbinder no cinema, do poema pornô a Borges em literatura. Versátil, desenvolto, o sujeito blip - feito com fiapos de informação e vivências __ não tem ego estável nem princípios rígidos. Descontraído, mutante, seu ego flutua conforme os testes das circunstâncias. É um experimentador, um improvisador por excelência, pondo mais ênfase na prática e na sedução que nas idéias. Narciso sem substância, a criança radiosa bem poderia ser a cantora Madonna - charme com raio laser.

Mas com essa criança glamurizada mora um outro - o andróide melancólico, também dessubstancializado e narcisista. Em sociedades movidas a informação acelerada, o sujeito também vira signo em alta rotação, sem substância por baixo. Os valores foram trocados pelos modismos, os ideais, pelo ritmo cotidiano. Saturado de consumo e informação, ele encosta no conformismo, refletindo a famosa apatia pós-moderna. Sem laços ou impressões fortes, sua apatia logo cai na depressão e na ansiedade, ambas melancólicas. A melancolia, sentimento frio, é o último grau da apatia - a doença da vontade - prevista por Nietzsche para o homem ocidental quando ele fosse o andróide programado pela tecnociência. Temendo a robotização,

mas sem projetos, sua vida interior é sem substância. Absorvido em si e nostálgico, sempre a analisar-se como Narciso, sua sensação mais comum é de irrealidade. O andróide melancólico bem poderia ser Woody Allen, com seu desencanto humorado e frio.

Criança radiosa e andróide melancólico são modelos ideais que, em doses variadas, entram na sensibilidade dos indivíduos pós-modernos. Eles espelham ainda os dois niilismos da atualidade: o niilismo ativo da criança radiosa, que acelera a decadência em direção a um possível Renascimento; e o niilismo passivo, do andróide melancólico, desorientado pelo fim dos valores tradicionais, amedrontado

pelo apocalipse - nuclear ou ecológico.

Agora, pondo na mesma cama Madonna e Woody Allen, que criatura eles iriam gerar? Sem dúvida que Boy George. Fixem os vários visuais dele. Em todos eles aparece: o homem e mulher/ colorido e branco/ infantil e programado/ desenvolto e apático/ permissivo e frio/ fascinante e melancólico/. Boy George não tem a unidade nem a identidade fixa do indivíduo burguês, moderno. Múltiplo, ele é o próprio sincretismo pós-moderno. O indivíduo atual é sincrético, isto é, sua natureza é confusa, indefinida, plural, feita com retalhos que não se fundem num todo. Por isso, nas definições da sensibilidade pós-moderna as palavras nunca batem: apatia desenvolta, desencanto extravagante, narcisismo melancólico. Tomemos a apatia desenvolta.

Apatia quer dizer insensibilidade, indiferença, falta de energia. Desenvolta significa desembaraço, inquietação, personalidade. Os dois termos são quase contraditórios, mas convivem lado a lado no indivíduo pós-moderno. São fruto da programação oferecida pelo sistema e da personalização buscada pelo sujeito, duas coisas meio em choque. Mas a apatia desenvolta - a agitação sem felicidade - salta aos olhos quando, no indivíduo, se juntam vazio e colorido na danceteria, tédio e curiosidade ante um filme pornô, frieza e fascinação ante os dígitos na tela de um computador, banalidade e excitação no shopping center.

Por que isso? Porque no mundo pós-moderno, objetos e informação, circulando em alta velocidade, são descartáveis. Da mesma forma, os sujeitos também produzem personalidades descartáveis (Bom? Mau? Indecidível, ninguém sabe). São simulacros espetaculares e sedutores de si mesmos. (Vide a importância da maquilagem. David Bowie, de batom, declarou: "quando me canso das minhas expressões, maneirismos, aparência, me dispo deles e visto uma nova personalidade".)

Ao mesmo tempo, num mundo de máquinas frias igual ao computador, que só funciona em ambientes com temperatura inferior a 18oC, os sujeitos também espelham frieza, distância, indiferença. Assim, o ritmo agitado criado pelo descartável e o novo, aliado à frieza do ambiente tecnológico, bem podem explicar a apatia desenvolta e a dessubstancialização do Narciso.

O sujeito pós-moderno é a glorificação do ego no instante, sem esperança alguma no futuro.

Original:

http://www.cefetsp.br/edu/eso/lourdes/oqueposmodernojair.html acessado em 12/11/2007