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quinta-feira, 3 de março de 2022

O significado número 40 na Bíblia do Tempo da Quaresma:

Biblicamente o número 40 refere-se ao tempo da espera, da preparação, da penitência, do jejum e até do castigo. Recorda-se os 40 dias que choveu durante o dilúvio (Gn 7,4). Moisés esperou 40 dias para receber as tábuas da Lei no Monte Sinai.

 Os israelitas peregrinaram quarenta anos no deserto em preparação à entrada na Terra Prometida (Ex 16,35). A cidade de Nínive fez penitência durante 40 dias para escapar do castigo divino. 

Elias viajou durante quarenta dias até chegar ao Monte Horeb onde Deus se manifestou na brisa (1 Rs 19,8). Jesus jejuou 40 dias no deserto preparando-se para sua vida pública (Mt 4,3; Mc 1,13; Lc 4,2).

 Após sua ressurreição, Ele apareceu durante 40 dias aos discípulos (At 1,3). Quarenta é, portanto, um número redondo e provisório que indica um tempo de preparação para algo que virá.



terça-feira, 25 de maio de 2021

Orígenes: O caminho humano-espiritual.

 Percebi que suas considerações sobre os questionamentos eternos do ser humano, se bem compreendidas, poderiam ser tão atuais hoje como em seu tempo, e que sua obra literária estava repleta de indicações que, corretamente traduzidas, poderiam servir para orientar a busca espiritual daqueles que hodiernamente vagam de seita em seita, de um movimento espiritual a outro, em busca de um caminho que satisfaça seus anseios de espiritualidade.

Percebi que o caminho do progresso de nossa mente, que pode se expandir em três direções: para o interior, para os nossos semelhantes ou para Deus. Ou pode se retrair e cristalizar-se, ligando-se apenas aos aspectos do mundo objetivo. Esse conceito foi desenvolvido no pensamento platônico na ocasião em que a mente humana fez um novo trajeto em busca da realidade do homem e do mundo.

A totalidade passa a ser composta por dois mundos: pelo mundo sensível como aparência do mundo suprassensível e pelo mundo suprassensível constituído pelas ideias-mestras, que são somente pensáveis. O caminho da mente humana passa a ser a passagem do mundo sensível para o suprassensível, ou também conhecido como inteligível.

Conceitos-chave da filosofia platônica que permitem acompanhar esse caminho são philia e Eros. O filósofo considera que o desejo da primeira coisa amiga é dirigido àquilo de que se carece. E aquilo de que se é carente é sempre um bem mais elevado em diferente nível, que evoluindo em nível em nível atinge um princípio amigo, ou seja, um primeiro e supremo Bem, do qual dependem todos os bens e qual são apenas imagens. É essa busca do Bem que funda toda amizade é a verdadeira fonte e o fundamento do amor, em função de que se amam todas as coisas particulares. O desejo é considerado como uma causa da amizade e do amor, e quem cria um elo entre eles.

Aristóteles, discípulo de Platão, discorda de seu mestre e atribui à philia uma utilidade. Ele a considera apenas como a ligação entre as pessoas, atribuindo ao Eros a ligação com a beleza. Dissocia-os, assim, sem considerar o elo do desejo une philia com o Bem e Eros com o Belo.

Reale alerta que não se pode limitar o alcance da amizade e do amor à esfera antropológica, pois Platão desde o primeiro momento em que fala de philia e de Eros imprime uma dimensão cósmica, criando o nexo com o Bem e a Medida absoluta. Ele afirma o seguinte sobre o diálogo Lisis:

A força do primeiro princípio de todo amor é estendida além do mundo humano: ele é o bem ao qual tendem e desejam todas as coisas, não apenas nós. Portanto, a amizade e o amor dos homens é o reflexo no nível antropológico da estrutura metafísica de toda a realidade e dos seus nexos fundadores (REALE, 2004, p. 347-348).



quinta-feira, 20 de maio de 2021

Panteísmo em Arthur Schopenhauer.

A controvérsia contemporânea entre teísmo e panteísmo travada pelos professores de filosofia pode será presentada alegórica e dramaticamente mediante um diálogo ocorrido na plateia de um teatro em Milão, durante a representação. Um dos interlocutores, convencido de se encontrar no grande e famoso teatro de marionetes de Girolamo, admira a arte com que o diretor fez os marionetes e dirige o espetáculo. O outro contradiz: De modo algum! Estamos no teatro della scalla, o próprio diretor e seus ajudantes participam do espetáculo, e realmente constituem as pessoas que enxergamos; até mesmo o poeta participa.

É divertido ver, porém, como os professores de filosofia namoram o panteísmo, qual fruto proibido, sem coragem de prosseguir em sua ação. Este seu comportamento já o relatei em meu ensaio sobre filosofia universitária, e recordava o tecelão Botton no sonho da noite de São João. — Ah, é um pão amargo, o pão da docência de filosofia! Primeiro há que dançar conforme o apito dos ministros, e, feito isto com suficiente graça, ainda se corre o risco do ataque dos selvagens antropófagos, os verdadeiros filósofos: estes são capazes de prender e arrastar alguém para qual polichinelo de bolso, mostrá-lo para diversão em suas apresentações.

Contra o panteísmo, sustento principalmente que ele não diz nada. Chamar Deus ao Mundo não significa explicá-lo, mas apenas enriquecer a língua com um sinônimo supérfluo da palavra Mundo. Se dizeis “o Mundo é Deus” ou “o Mundo é o Mundo”, dá no mesmo. Quando partimos de Deus como se ele fosse o dado e o a-ser-explicado, e dizemos, portanto: “Deus é o Mundo”; então numa certa medida existe uma explicação, ao se reconduzir ignotum a notius: mas trata-se somente de uma explicação de vocabulário. Porém, quando se parte do efetivamente dado, portanto o mundo, e se afirmar “o Mundo é Deus”, então se torna claro que com isto não se diz nada, ou ao menos que se explica ignotum per ignotius [O desconhecido pelo mais desconhecido]. Justamente por isto o panteísmo pressupõe o teísmo como precedente: pois apenas enquanto partirmos de um deus, e, portanto, já o temos e com ele estamos familiarizados, podemos pôr fim chegar a identificá-lo com o

mundo, para eliminá-lo de uma maneira decente. Porque não partimos imparcialmente do mundo como o a-ser-explicado, mas de deus como o dado; como, contudo, em pouco tempo não mais sabíamos o que fazer com este, seu papel deveria ser assumido pelo mundo. Eis a origem do panteísmo. A ninguém ocorrerá de imediato e despojadamente considerar este mundo um deus. Pois deveria se tratar de um Deus muito mal esclarecido, incapaz de algo melhor do que se transformar num mundo como este, tão faminto, e para aqui suportar, na figura de inumeráveis milhões de seres vivos, porém aterrorizados e maltratados, que em sua totalidade conseguem existir momentaneamente apenas um devorando ao outro, a miséria, a necessidade e a morte, sem medida nem objetivo, por exemplo, na figura de seis milhões de escravos negros a receber

diariamente em média sessenta milhões de chicotadas sobre o corpo nu, e para vegetar debilmente na figura de três milhões de tecelões europeus, com fome e desgosto, em catres obscuros ou sinistras salas de fábricas etc. Que passatempo para um deus! Como tal, deveria estar acostumado com coisas inteiramente diferentes.

Em consequência, o pretenso progresso do teísmo ao panteísmo, encarnado com seriedade e não apenas como negação mascarada, como acima, é uma transição do improvado e pensado com dificuldade ao propriamente absurdo. Pois por mais indeciso, oscilante e difuso que seja o conceito associado à palavra de deus, dois predicados lhe são inseparáveis: o mais alto poder e a mais alta sabedoria. Que um ser assim ditado se tenha transferido à situação acima descrita, constitui um pensamento absurdo, pois nossa situação no mundo é tal que nenhum ser inteligente, e muito menos um ser onisciente, a adotará. Panteísmo é necessariamente otimismo, e por isto falso. O teísmo, por seu lado, simplesmente carece de provas, e se há uma certa dificuldade em pensar que o mundo infinito é obra de um ser pessoal e individual, como conhecemos somente na natureza animal, também isto não é propriamente absurdo. Que um ser onipotente e onisciente crie um mundo sofrido, ainda pode ser pensado, mesmo que não conheçamos o porquê para tanto; por isto, ainda que lhe atribuamos também a propriedade da maior bondade, a imperscrutabilidade de sua decisão se torna a saída pela qual uma tal doutrina escapa à acusação de absurdidade. Mas com a aceitação do panteísmo, o próprio deus criador é o infinitamente atormentado, e somente neste pequeno mundo, o que morre uma vez em cada segundo, e isto por atos livres, o que constitui um absurdo. Muito mais correto seria identificar o mundo com o demônio, o que aliás fez o autor da Teologia Alemã, ao afirmar na p. 93 da sua obra imortal (conforme o texto reconstruído, Stuttgart, 1851): “Por isto o espírito do mal e a natureza são unos, e onde a natureza não foi subjugada, também o atroz inimigo não o foi”.

Estes panteístas aparentemente conferem ao Sansara o nome Deus. Por outro lado, os místicos dão o mesmo nome ao Nirvana. Deste, porém, contam mais do que podem saber: o que não fazem os budistas; motivo porque o seu nirvana é precisamente um relativo nada. Em seu sentido correto e apropriado, a palavra Deus é utilizada pela sinagoga, pela igreja e pelo islão. Se há entre os deístas os que entendem pelo nome deus o Nirvana, então o nome não seja motivo para discussão. São os místicos que assim parecem entendê-lo. Re intellecta, in verbis simus faciles [uma vez compreendida a coisa, sejamos simples nas palavras].

A expressão “o mundo é um fim em si mesmo”, atualmente de uso frequente, conduz a uma indecisão quanto à sua explicação; se através do panteísmo ou do simples fatalismo, mas de qualquer modo permite apenas um significado físico, e não moral, da mesma, na medida em que, sob esta última hipótese, o mundo sempre se apresentaria como meio para um fim mais elevado. Porém justamente o pensamento de que o mundo possui apenas uma significação física e não moral constitui o mais grave engano, originado pela pior

perversidade do espírito.

Obs: Nem o panteísmo nem a mitologia judaica são suficientes, se pretendeis explicar o mundo; antes há que encará-lo de frente.



As 15 Dores Secretas de Jesus.

«Olha para as Minhas chagas. São ferimentos que recebi na casa de Meus amigos.» (Zac 13, 6)

Depois de ser preso no Monte das Oliveiras, entre o momento que JESUS foi apresentado a Anás e Caifás no final da noite, (Mt 26,57ss; Mc 14,53ss; Lc 22,54ss; Jo 18,13) e o momento em que foi levado à Pilatos e Herodes no início da manhã (Mt 27,1ss; Mc 15,1ss; Lc 22,66ss; Jo 18,28ss), Ele ficou à mercê dos guardas do Templo dos judeus (Lc 22, 63-65). Foi precisamente durante este intervalo, na madrugada, que JESUS sofreu as "15 dores secretas".

«Quem poderia acreditar nisso que ouvimos? (...) Não tinha Graça nem beleza para trair nossos olhares, e seu aspecto não podia seduzir-nos. Era desprezado, era a escória da humanidade, homem das dores, experimentado nos sofrimentos; como aqueles, diante dos quais se cobre o rosto, era amaldiçoado e não fazia-nos caso Dele. Em verdade, Ele tomou sobre si nossas enfermidades, e carregou os nossos sofrimentos: e nós o reputávamos como um castigado, ferido por Deus e humilhado. Mas Ele foi castigado por nossos crimes, e esmagado por nossas iniquidades; o castigo que nos salva pesou sobre Ele; fomos curados graças às suas chagas. (...) O Senhor fazia recair sobre Ele o castigo das faltas de todos nós. Foi maltratado e resignou-se; não abriu a boca, como um cordeiro que se conduz ao matadouro. (...)

Por um iníquo julgamento foi arrebatado. Quem pensou em defender sua causa quando foi suprimido da terra dos vivos, morto pelo pecado de meu povo?» (Is 53, 1.2b-5.6b-7a.8)

As "15 Dores Secretas de JESUS" foram recebidas por revelação mística à uma monja clarissa, chamada Irmã Maria Madalena, que vivia em Roma, e morreu em fama de santidade. O texto original em alemão é particularmente assinalado no seu final com as palavras: «Esta devoção foi confirmada e recomendada pelo Sacro Colégio dos Cardeais e pelo papa Clemente XII (+1.470)».

Atendendo a um pedido desta humilde religiosa, que desejava conhecer, por amor, as torturas que JESUS sofreu durante a madrugada na prisão, e que eram ainda desconhecidas, Ele apareceu a ela revelando que fora tratado assim:

01. Amarraram os Meus pés com uma corda e arrastaram-Me, por uma escada abaixo, para uma prisão fedorenta e imunda. (Pai-nosso, Ave-Maria e Glória).

02. Despojaram-Me das Minhas vestes e cobriram o Meu Corpo de Chagas com pontas de ferro. (Pai-nosso, Ave-Maria e Glória).

03. Ataram uma corda em volta do Meu Corpo e arrastaram-Me pelo chão, de uma ponta a outra da prisão. (Pai-nosso, Ave-Maria e Glória).

04. Ligaram-Me a uma trave de madeira e nela Me deixaram suspenso, até que escorregasse e caísse por terra. Esse sofrimento fez jorrar dos Meus olhos lágrimas de Sangue. (Pai-nosso, Ave-Maria e Glória).

05. Fixaram-Me a uma estaca e martirizaram-Me com todas as espécies de armas, varando-Me o Corpo, atirando-Me pedras e queimando-Me com brasas e archotes. (Pai-nosso, Ave-Maria e Glória).

06. Atravessaram-Me com sovelas e agulhas, arrancando, em vários lugares, a pele e a carne de Meu Corpo e das Minhas veias. (Pai-nosso, Ave-Maria e Glória).

07. Amarraram-Me a uma coluna e colocaram Meus pés sobre uma chapa metálica incandescente. (Pai-nosso, Ave-Maria e Glória).

08. Coroaram-Me com uma coroa de ferro e vedaram os Meus Olhos com trapos repugnantes. (Pai-nosso, Ave-Maria e Glória).

09. Assentaram-Me sobre uma cadeira cheia de pregos aguçados que abriram profundos buracos em Meu Corpo. (Pai-nosso, Ave-Maria e Glória).

10. Aspergiram Minhas Chagas com resina e chumbo fundido e lançaram-Me da cadeira abaixo. (Pai-nosso, Ave-Maria e Glória).

11. Para vergonha Minha e Meu suplício cravaram agulhas e pregos nos furos da Minha barba, já violentamente arrancada. (Pai-nosso, Ave-Maria e Glória).

12. Atiraram-Me sobre uma cruz, à qual Me amarraram com um corda, de pés e mãos, com uma tal força e dureza, que estive a ponto de ser asfixiado. (Pai-nosso, Ave-Maria e Glória).

13. Espinharam-Me a Cabeça. Um deles pôs o pé sobre o Meu peito e atravessou-Me a língua com

um espinho desta coroa. (Pai-nosso, Ave-Maria e Glória).

14. Colocaram as mais horríveis imundícies em Minha Boca. (Pai-nosso, Ave-Maria e Glória).

15. Fizeram recair sobre Mim uma torrente de injúrias infames, ligaram-Me as Mãos atrás das Costas e conduziram-Me para fora da prisão, batendo-Me e vergastando-Me vezes sem conta. (Pai-nosso, Ave-Maria e Glória).

«Minha querida filha! Peço-te que faças conhecidas de muitas almas estas Minhas angústias e dores secretas, a fim de que sejam meditadas e honradas. No Dia do Juízo Final Eu darei uma eternidade para aqueles que, por amor e com reconhecimento, Me tenham oferecido todos os dias os merecimentos de Meus Sofrimentos secretos».

JESUS ainda pediu para que se rezasse esta oração de louvor e reparação:

«Meu SENHOR e meu DEUS! É minha vontade irrevogável honrar-Vos e adorar-Vos por todas as Vossas dores secretas e pelo derramamento do Vosso Sangue. Quantos grãos de areia haja no mar, grãos de terra nos campos, rebentos de erva em toda a terra, frutos nas árvores, folhas nos ramos, flores nos campos, estrelas no firmamento, Anjos no Céus e criaturas sobre a terra, tantas milhares de vezes sejam adorados e glorificados o SENHOR JESUS CRISTO, o Seu Santíssimo Coração, o Seu preciosíssimo Sangue, o Sacrifício Divino da Santa Missa e o Santíssimo Sacramento do Altar. Sejam louvados e glorificados a Santíssima Virgem Maria os noves coros gloriosos dos Santos Anjos e a multidão dos Santos, por mim e por todos os homens, agora e por toda a eternidade. Tantas vezes eu desejo, meu bem amado JESUS, agradecer-Vos, servir-Vos, agradar-Vos, reparar todos os ultrajes que Vos são feitos, e pertencer-Vos de corpo e alma. Quero, muitas vezes, arrepender-me dos meus pecados e pedir-Vos, ó meu DEUS, perdão e misericórdia. Quero também oferecer a DEUS PAI os Vossos Méritos infinitos, em reparação das minhas faltas, dos meus pecados e pelos meus tão merecidos castigos. Estou firmemente decidido a mudar de vida e peço-vos que, a hora da minha morte, me sinta feliz e em paz. Quero também rezar pela libertação das pobres almas do Purgatório. Desejo renovar fielmente este louvor de reparação e amor, em cada hora do dia e da noite, até ao último instante da minha vida. Peço-Vos, meu bom e amabilíssimo JESUS, que confirmeis no Céus este meu sincero desejo. Não consintais, JESUS, que ele seja destruído pelos homens, e muito menos ainda pelo espírito maligno. Amém.» (Pai-nosso, Ave-Maria, Glória).




A dificuldade de perdoar os pais.

Certa vez, não lembro onde, a frase “Errar é humano, perdoar é divino”. Eu concordo plenamente.

Deve existir uma ponte entre a visão do mundo da psicoterapia e a visão do mundo que nasce das correntes espirituais. A psicoterapia sustenta que, para uma pessoa amadurecer, ela precisa atravessar a dor da infância, enquanto as tradições espirituais afirmam que ela precisa transcender as emoções negativas e cultivar as emoções positivas, como o amor e o perdão. Se levarmos em consideração as mais recentes novidades nos estudos da psicoterapia, poderemos ver que uma ponte entre estas duas realidades, já está sendo construída.

A esse respeito, o estudioso Jeremy Holmes escreveu uma coisa que poderia responder à sua pergunta. Ele explicou que, em psicoterapia, chegar a uma relação harmoniosa entre as gerações implica três etapas diferentes. A primeira consiste em nos conscientizarmos dos modos em que os sentimentos e o comportamento atuais são ditados pela experiência passada. Pode ser doloroso para nós, sobretudo se as influências do passado tiverem raízes profundas. A segunda fase consiste no fato de diferenciarmos a nós mesmos daquilo que podem ser as influências externas. Nesse estágio pode-se experimentar raiva em relação aos pais e protesto existencial. Muitos pacientes esperam que, com a ajuda da psicoterapia, poderá emergir um novo “eu”, são e salvo, livre do passado. Mas esse projeto poderá ter sucesso só em parte. Nós somos feitos pelo nosso passado. Não existe ninguém que se faça a si mesmo.

A terceira etapa consiste em dar-se conta de que também os nossos pais – que criticamos com tanta aspereza – são o resultado da própria história pessoal. Quando o paciente compreende isso, ele se dá conta de que, se as coisas tivessem sido diferentes, ele não teria vindo à existência. A esse ponto ele pode começar a perdoar os seus pais, a participar do sofrimento deles e, por fim, a ser grato por eles o terem colocado neste mundo mesclado de alegrias e de sofrimentos.

No fundo, trata-se decidir acolher a si mesmo e os outros. Uma decisão que leva à liberdade e à serenidade interiores.




O Sistema Cristão Arthur Schopenhauer

Escrito em 1851

Quando a Igreja diz que, no que concerne os dogmas da religião, a razão é totalmente incompetente e cega, e seu uso deve ser repreendido, isso está na realidade atestando o fato de que esses dogmas são alegóricos em sua natureza, e não devem ser julgados pelo padrão no qual somente a razão se adapta, tomando todas as coisas sensu próprio. Deste modo, os absurdos de um dogma são apenas uma marca, um sinal do que nele é alegórico e mitológico. No caso sob consideração, entretanto, os absurdos originaram-se do fato de que duas doutrinas tão heterogêneas como as do Velho e Novo Testamento tiveram de ser combinadas. A grande alegoria teve um crescimento gradual. Sugerida por circunstâncias externas e casuais, desenvolveu-se pela interpretação sobre esta, uma interpretação taticamente relacionada com certas verdades profundas apenas parcialmente compreendidas. A alegoria foi finalmente completada por Santo Agostinho, que penetrou mais profundamente em seu significado, e assim foi capaz de concebê-la como um todo sistemático e resolver seus defeitos. Consequentemente, a doutrina agostiniana, confirmada por Lutero, é a forma completa do cristianismo; e os protestantes de hoje, que veem a revelação sensu próprio e a confinam a um único indivíduo, estão equivocados ao olhar os rudimentos do cristianismo como sua mais perfeita expressão. Mas o lado ruim de todas religiões é que, em vez de poderem confessar sua natureza alegórica, têm de ocultá-la; por extensão, ostentam suas doutrinas com toda seriedade como verdadeiras sensu próprias, e como absurdos constituem uma parte essencial dessas doutrinas, tem-se o grande dano de uma fraude contínua. E, o que é pior, chega o dia em que não são mais verdadeiras sensu próprio, e então se chega ao seu fim; de forma que, neste particular, seria melhor admitir sua natureza alegórica de uma vez. Mas a grande dificuldade consiste em ensinar às massas que algo pode ser verdadeiro e falso ao mesmo tempo. E como todas religiões são, em maior ou menor grau, dessa natureza, devemos reconhecer o fato de que a humanidade não é capaz de proceder sem uma certa quantidade de absurdo — que o absurdo é um elemento de sua existência, uma ilusão indispensável; como, de fato, outros aspectos de sua vida testificam. Afirmei que a combinação do Velho Testamento com o Novo Testamento deu luz a absurdidades. Entre os exemplos que ilustram meu ponto de vista, posso citar a doutrina cristã da predestinação e da graça, como formulada por Santo Agostinho e adotada deste por Lutero; de acordo com esta, um homem é dotado de graça e outro não. A graça, então, consiste de um privilégio recebido no nascimento e chega ao mundo em sua forma acabada; um privilégio também, numa questão de primeira importância. O que há de funesto e absurdo nessa doutrina pode ser rastreado à ideia contida no Velho Testamento, de que o homem é a criação de uma vontade externa, a qual lhe convocou à existência a partir do nada. É bastante verdadeiro que a genuína excelência moral é de fato inata; mas o significado da doutrina cristã é expresso de um modo distinto — e mais racional — através da teoria da metempsicose*1, bem conhecida pelos brâmanes e dos budistas. De acordo com essa teoria, as qualidades que distinguem um homem de outro são recebidas no nascimento, isto é, são trazidas de outro mundo e uma vida anterior; essas qualidades não são um presente externo da graça, mas os frutos dos atos perpetrados nesse outro mundo. Mas

o dogma da predestinação de Santo Agostinho está conectado com outro dogma, a saber, de que o grosso da humanidade está corrompido e destinado à danação eterna, de que muitos poucos serão considerados ordeiros e obterão a salvação, e isso apenas em consequência do dom da graça, e porque estavam predestinados à salvação; enquanto o resto será dominado pela perdição que mereceram, e posteriormente sofrerão a tormenta eterna no inferno. Visto em sua significação comum, o dogma é revoltante, pois se chega a isto: condena-se um homem, seja quem for, talvez sequer com vinte anos, a expiar seus erros, ou mesmo sua descrença, através de um sofrimento eterno; mais ainda, faz desta danação quase universal um efeito natural do pecado original, e, portanto, a consequência necessária da queda*2. Este resultado deve ter sido previsto por aquele que fez a humanidade, o qual, em primeiro lugar, não os fez melhores do que são e, em segundo lugar, fez-lhes uma armadilha na qual necessariamente sabia que iriam cair; pois fez o mundo todo e nada lhe é oculto. Então, de acordo com essa doutrina, Deus criou a partir do nada uma raça fraca e propensa ao pecado para bani-la ao tormento eterno. E, como última característica, ouvimos que este Deus, o qual prescreve tolerância e perdão a todo pecado, não exercita nada disso, mas faz exatamente o oposto; pois uma punição que não chega ao fim com todas as coisas — quando o mundo estiver terminado e seu papel cumprido — não pode ter como objetivo a melhora ou a deterioração e, portanto, trata-se de pura vingança. Assim, desse ponto de vista, toda a raça de fato está destinada à tortura e danação eternas, e criada expressamente para cumprir este fim, tendo como única exceção os poucos que são resgatados pela eleição da graça — por motivos que são de todos desconhecidos.

Colocando isso de lado, parece que nosso Sagrado Senhor criou o mundo em benefício do diabo! Teria sido tão melhor se não o tivesse criado absolutamente. Seria demais, todavia, para um dogma tomado sensu próprio. Mas o vejamos sensu alegórico e toda a questão torna-se passível de uma interpretação satisfatória. O que há

de absurdo e revoltante neste dogma é, no principal, como disse, o simplório desenlace do teísmo judaico, com sua “criação a partir do nada” e sua tola e paradoxal negação da doutrina da metempsicose, a qual está envolvida nesta ideia, uma doutrina de que é natural, até um certo ponto auto evidente e, exceto pelos judeus, aceita por quase toda a raça humana em todos os tempos. A fim de remover o enorme mal proveniente do dogma agostiniano e a fim de modificar sua natureza revoltante, o papa Gregório I, no século VI, muito prudentemente desenvolveu a doutrina do Purgatório, a essência da qual já existia em Origen*3. A doutrina foi regularmente incorporada à fé da Igreja, de modo que a visão original foi muito modificada, e um certo substituto foi proporcionado à doutrina da metempsicose; pois tanto uma quando a outra admitem o processo da purificação. Com o mesmo intuito, a doutrina da “Restauração de todas as coisas” [grego: apokatastasis] foi estabelecida, de acordo com a qual, no último ato da Comédia Humana, os pecadores todos seriam restabelecidos in integrum. São apenas os protestantes, com sua crença obstinada na Bíblia, que não conseguem ser induzidos a abrir mão da punição eterna no inferno. Se alguém fosse rancoroso, poderia dizer “que isso lhes faça muito bem”, mas é consolador pensar que não acreditam realmente na doutrina — deixam-na em paz, pensando em seus corações “não pode ser tão mau assim”.

O caráter rígido e sistemático da mente de Santo Agostinho levou-o — em seu austero dogmatismo e sua resoluta definição de doutrinas apenas indicadas

na Bíblia e, de fato, sobre fundamentos muito vagos — a apresentar perfis rígidos a essas doutrinas e colocar interpretações severas sobre o cristianismo: o resultado foi que sua visão nos ofende, e assim como em seu tempo o pelagianismo*4 surgiu para combatê-lo, em nossos dias o racionalismo faz o mesmo. Tome, por exemplo, o caso em que afirma genericamente no De Civitate Dei, livro XII, cap. 21. Resume-se a isto: Deus cria um ser a partir do nada, o proíbe de certas coisas e ordena-lhe outras; e porque esses comandos não são obedecidos, tortura esse ser por toda a eternidade com toda angústia concebível; e, para esse propósito, une corpo e alma inseparavelmente — de tal forma que o tormento não destrói este ser através de sua separação em seus elementos, libertando-o — para que este possa viver em eterna dor. Esta pobre criatura, feita a partir do nada! Ao menos possui uma reivindicação sobre seu nada original: deve ser assegurado, como questão de direito, desta última retirada, a qual, em todo caso, não pode ser muito má: foi aquilo que herdou. Não posso absolutamente deixar de me compadecer com este ser. Se adicionarmos a isso as doutrinas agostinianas restantes, de que tudo isso não depende dos próprios pecados e omissões do homem, pois já foi predestinado a acontecer, realmente não se sabe o que pensar. Nossos racionalistas altamente educados sem dúvida dizem “é tudo falso, é apenas um bicho-papão; estamos num estado de constante progresso, passo a passo elevando-nos em maior perfeição”. Ah! Que pena não termos começado antes; já deveríamos estar lá.

No sistema cristão o diabo é um personagem da maior importância. Deus é descrito como absolutamente bom, sábio e poderoso; e, se não fosse contrabalanceado pelo diabo, seria impossível conceber de onde veio a inumerável e imensurável maldade que predomina neste mundo se não há um diabo para responsabilizar. E, desde que os racionalistas livraram-se do diabo, o dano infligido ao outro lado continua a crescer, e está tornando-se mais e mais palpável; como poderia ter sido previsto — e foi previsto — pelos ortodoxos. O fato é que não se pode remover um pilar de uma construção sem comprometer todo o seu resto. E isso confirma a visão — a qual foi estabelecida em outros fundamentos — de que Jeová é uma transformação de Ormuzd, e Satã de Ahriman, o qual deve ser considerado vinculado ao primeiro. O próprio Ormuzd é uma transformação de Indra.

O cristianismo tem essa desvantagem peculiar de que, ao contrário de outras religiões, não é um sistema doutrinário puro: sua principal e essencial característica consiste em se tratar de uma história, uma série de eventos, uma coleção de fatos, um testemunho dos atos e das dores de indivíduos: é essa história que constitui o dogma, e a crença nesta a salvação. Outras religiões — por exemplo, o budismo — têm, é verdade, apêndices históricos, a saber, a vida de seus fundadores: isso, entretanto, não é uma parte, uma parcela do dogma, mas é incorporada juntamente. Por exemplo, o Lalita-Vistara pode ser comparado com o Evangelho, visto que contém a vida de Sakya-muni, o buda do período atual da história mundial: mas isso é algo bastante à parte e diferente do dogma, do sistema em si; e por esta razão: as vivências dos budas antigos foram substancialmente diferentes e as dos do futuro também serão diferentes das do buda de hoje. O dogma absolutamente não se confunde com a carreira de seu fundador; este não se sustenta em pessoas ou eventos individuais; é algo universal e igualmente válido em todos os tempos. O Lalita-Vistara não é, portanto, um evangelho no sentido cristão da palavra; não é a jubilosa mensagem de um ato de redenção; é a carreira daquele que demonstrou como

cada qual pode redimir-se a si próprio. A constituição histórica do cristianismo faz os chineses rirem dos missionários enquanto contadores de histórias.

Posso mencionar aqui outro erro fundamental do cristianismo, um erro que não pode ser justificado, e cujas consequências nocivas são óbvias o tempo todo: refiro-me à inatural distinção que o cristianismo faz entre o mundo humano e animal — ao qual, de fato, pertence. Estabelece o homem como todo-importante e olha aos animais tão-somente como coisas. O bramanismo e o budismo, por outro lado, verdadeiros para com os fatos, reconhecem de um modo positivo que o homem está relacionado genericamente com toda a natureza, especialmente e principalmente com a natureza animal; e, em seus sistemas, o homem é sempre representado pela teoria da metempsicose ou, do contrário, como intimamente conectado com o mundo animal. O importante papel representado pelos animais através de todo o budismo e bramanismo, em comparação com seu completo desprezo no judaísmo e cristianismo, põe fim a qualquer dúvida a respeito de qual sistema está mais próximo da perfeição, apesar de na Europa termos nos tornados acostumados à absurdidade da alegação. O cristianismo contém, de fato, uma grande e essencial imperfeição em limitar seus princípios ao homem e em recusar direitos a todo o mundo animal. Como a religião falha em proteger os animais das multidões brutas, insensíveis e frequentemente mais que bestiais, o dever recai sobre a lei; e como a lei é desigual nesta tarefa, formaram-se agora por toda a Europa e América sociedades pela proteção dos animais. Em toda a não-circuncidada Ásia, tal procedimento seria a coisa mais supérflua do mundo, pois animais são suficientemente protegidos pela religião, que até os faz objetos de caridade. Um exemplo de como tais sentimentos de caridade se manifestam pode ser visto no grande hospital de animais em Surat, ao qual cristãos, maometanos e judeus podem enviar seus animais enfermos que, se curados, muito corretamente não são devolvidos aos seus donos. Do mesmo modo, quando um brâmane ou um budista tem boa sorte, um acontecimento feliz em qualquer questão, em vez de murmurar um Te Deum*5, vai ao mercado, compra pássaros e abre as gaiolas nos portões da cidade; algo que pode ser visto frequentemente em Astrachan, onde os adeptos de todas religiões se encontram: e assim por diante em centenas de outras maneiras. Por outro lado, veja-se o rufianismo revoltante com o qual nosso público cristão trata seus animais; matando-os sem nenhum motivo e rindo-se disso, ou os mutilando ou torturando; mesmo seus cavalos, que constituem os meios mais diretos para seu sustento, são exigidos ao máximo em idade avançada, e o último esforço é explorado de seus pobres ossos até que finalmente sucumbam sob o chicote. Alguém poderia afirmar, com razão, que a humanidade é o diabo da Terra, e os animais as almas que atormentam. Mas o que se poderia esperar das massas quando há homens educados, mesmo zoólogos que, em vez de admitir o que lhes é tão familiar, a essencial identidade entre o homem e o animal, são fanáticos e estúpidos o suficiente para oferecer uma diligente resistência aos seus colegas honestos e racionais quando classificam o homem corretamente como um animal ou demonstram a semelhança entre este e um chimpanzé ou orangotango. É algo revoltante que um escritor tão devoto e cristão em seus sentimentos como Jung Stilling use um paralelo como este, em seu Scenen aus dem Geisterreich. (livro II, p. 15) “Repentinamente o esqueleto enrugou-se numa forma indescritivelmente horrenda e acanhada, assim como quando se coloca uma grande aranha no foco de uma lamparina, e observa o sangue purulento assoviar e borbulhar no calor”.

Esse homem de Deus era, então, culpado de tal infâmia! Ou observou calmamente enquanto outro a cometia! Em ambos os casos, chega-se à mesma conclusão. Pensou-o um mal tão pequeno que o mencionou de passagem, e sem um traço de emoção. Tais são os efeitos do primeiro livro de Gênesis e, de fato, de toda a concepção judaica de natureza. O padrão reconhecido pelos hindus e budistas é o Mahavakya (o grande verbo) — “tat-twam-asi” (isto é a ti próprio), que pode sempre ser dito de qualquer animal para lembrar-nos da identidade de seu ser íntimo como o nosso. Perfeição moral, de fato! Absurdo.

As características fundamentais da religião judaica são o realismo e o otimismo, visões do mundo que estão intimamente relacionadas; constituem, de fato, as condições do teísmo. Pois o teísmo vê o mundo material como absolutamente real e considera esta vida como uma agradável bênção que nos foi concedida. Por outro lado, as características fundamentais das religiões brâmanes e budistas são o idealismo e o pessimismo, vendo a existência do mundo como com uma natureza onírica e a vida como resultado de nossos pecados. Nas doutrinas de Zend-Avesta — das quais, como se sabe, o judaísmo teve origem — o elemento pessimista é representado por Ahriman. No judaísmo, Ahriman tem, como Satã, apenas uma posição subordinada; mas, como Ahriman, é o senhor das serpentes, dos escorpiões e da canalha. Mas o sistema judaico posteriormente utiliza Satã para corrigir o otimismo, seu erro fundamental, e naQueda introduz o elemento pessimista, uma doutrina exigida pelos fatos mais óbvios do mundo. Não há ideia mais verdadeira no judaísmo que essa, apesar de transferir ao curso da existência o que deveria ser representado como seu fundamento e antecessor.

No Novo Testamento, por outro lado, deve ser de algum modo possível remeter a origens indianas: seu sistema ético, sua visão ascética da moralidade, seu pessimismo e seu Avatar, são todos completamente indianos. É sua moralidade que o coloca em uma posição de tamanho enfático e essencial antagonismo com o Velho Testamento, de modo que a estória da Queda é o único ponto de conexão possível entre os dois. Pois quando a doutrina indiana foi importada à terra prometida, duas coisas muito diferentes tiveram de ser combinadas: por um lado, a consciência da corrupção e miséria do mundo, sua necessidade de redenção e salvação por meio de um Avatar, juntamente com uma moralidade baseada da autonegação e arrependimento; por outro lado, a doutrina judaica do monoteísmo, com seu corolário de que “todas as coisas são muito boas” [grego: panta kala lian]. E a tarefa foi empreendida tanto quanto possível, isto é, tanto quanto se pode combinar duas crenças de tal modo heterogêneas e antagônicas.

Como a hera agarra-se e se estabelece em um tronco, conformando-se em todos os lugares às irregularidades e revelando seu perfil, mas ao mesmo tempo cobrindo-o com vida e graça, transformando o antigo aspecto em algo agradável ao olhar; assim a fé cristã, originada da sabedoria da Índia, transborda sobre o velho tronco do rude judaísmo, uma árvore de crescimento distinto; a forma original deve permanecer em parte, mas sofrendo uma completa mudança e tornando-se cheia de vida e verdade, de um modo que aparenta ser a mesma árvore, mas na realidade é outra.

O judaísmo apresentou o Criador separado do mundo, o qual produziu a partir do nada. O cristianismo identifica este Criador com o Salvador e, através deste, com a humanidade: figura como seu representante; são redimidos por meio dele, assim como caíram em Adão, e permaneceram desde então cativos

da iniquidade, corrupção, sofrimento e morte. Tal é a visão adotada pelo cristianismo em comum com o budismo; o mundo não pode mais ser visto à luz do otimismo judaico, que achava “todas coisas muito boas”; não, no esquema cristão, o diabo é nomeado como seu Príncipe ou Governante ([grego: ho archon tou kosmoutoutou] João 12, 33). O mundo não é mais um fim, mas um meio: o reino da felicidade eterna está além deste, além do túmulo. A resignação neste mundo e o direcionamento de todas as nossas esperanças a um melhor constituem o espírito do cristianismo. O caminho para este fim é aberto pelo Sacrifício, que é a Redenção deste mundo e seus meios. E no sistema moral, em vez da lei da vingança, há o comando de amar seu inimigo; em vez da promessa de imensurável prosperidade, a garantia da vida eterna; em vez da visita dos pecados dos pais sobre os filhos até a terceira e quartas gerações, o Espírito Santo governa e cobre todos.

Vemos, então, que as doutrinas do Velho Testamento são retificadas e têm seu significado alterado pelas do Novo, de modo que, nos assuntos mais importantes e essenciais, uma concordância é trazida entre estes e as antigas religiões da Índia. Tudo que é verdadeiro no cristianismo também pode ser encontrado no bramanismo e budismo. Mas no hinduísmo e budismo em vão se procuraria por um paralelo com as doutrinas judaicas de “um nada trazido à vida” ou de “um mundo feito no tempo” que não pode ser humilde o bastante em sua gratidão e louvores a Jeová por uma existência efêmera cheia de miséria, angústia e necessidades.

Qualquer indivíduo que seriamente pense que seres supra-humanos concederam à nossa raça informações quanto aos objetivos de sua existência e do mundo ainda está em sua infância. Não há outra revelação senão os pensamentos dos sábios — e mesmo esses pensamentos estão sujeitos a erros, como é sina de tudo que é humano —, que frequentemente estão vestidos por estranhas alegorias e mitos sob o nome de religião. Assim, é indiferente se um homem vive e morre com a crença em seus próprios pensamentos ou em pensamentos alheios; pois nunca passa de um pensamento humano, de uma opinião humana, na qual confia. Ainda assim, em vez de confiar no que suas próprias mentes lhes dizem, os homens, via de regra, têm uma fraqueza para confiar naqueles que fingem ter fontes sobrenaturais de conhecimento. E, tendo em vista a enorme desigualdade intelectual entre os homens, é fácil perceber que os pensamentos de uma mente podem, num certo sentido, parecer uma revelação a outra.

Notas do tradutor

1. Doutrina segundo a qual uma mesma alma pode animar sucessivamente corpos diversos, homens, animais ou vegetais.

2. Referência à “queda do homem” mencionada na Bíblia, retratada na parábola da desobediência de Adão e Eva.

3. Origen — 185 – 254? — acreditava que o inferno era as chamas do julgamento através das quais todos precisam passar. Os ordeiros passariam em um instante e chegariam ao paraíso em oito dias após o julgamento final. Os perversos permaneceriam no fogo por “um século de séculos”, um longo — mas não eterno — período de tempo. Eventualmente, todos escapariam das chamas do julgamento e atingiriam o céu. Apesar de sua visão do inferno ter sido rejeitada

pelos que vieram depois dele, sua imaginação pode ter influenciado pensadores posteriores.

4. A doutrina de Pelágio (séc. V), heresiarca inglês, a qual nega o pecado original e a corrupção da natureza humana e, consequentemente, a necessidade do batismo.

5. Lat. te, ‘te’, ‘a ti’, + Deum, ‘Deus’; Subentende-se laudamus, ‘louvamos’. Cântico da Igreja católica, em ação de graças, que principia por essas palavras latinas; hino ambrosiano.

autor: Arthur Schopenhauer tradução:André Cancian

fonte: The Christian System 6



sexta-feira, 14 de maio de 2021

O que é Pentecostes?

 Um pouco de História Pentecostes é uma celebração religiosa cristã que comemora a descida do Espírito Santo sobre os apóstolos de Jesus Cristo, cinquenta dias depois da Páscoa. Atualmente, o Pentecostes é comemorado principalmente pela Igreja Católica e Ortodoxa, no entanto, ambas celebram em datas diferentes. Em 2021, o Dia de Pentecostes será comemorado em 23 de maio, por exemplo. Por norma, o Pentecostes é celebrado 50 dias depois do domingo de Páscoa, data instituída como a da Ressurreição de Jesus Cristo. 

 Para os cristãos, o Pentecostes é uma das datas mais importantes do Calendário Litúrgico, juntamente com a Páscoa e o Natal. O termo “Pentecostes” se originou a partir do grego pentēkostḗ, que significa “quinquagésimo”, em referência aos 50 dias que se sucedem depois da Páscoa. 1. No Antigo Testamento: O Pentecostes era uma comemoração feita exclusivamente pelos judeus, logo após a última colheita do ano, numa forma de agradecer pela comida providenciada por Deus.

 Também ficou conhecida como uma celebração da Lei de Deus. Essa comemoração aconteceu especificamente na primeira Páscoa após o povo de Israel sair da escravidão do Egito e receber os Dez Mandamentos enviados por Deus. Porém, no Antigo Testamento, o Dia de Pentecostes é citado com outros nomes, como: Festa da Colheita ou Sega (Êxodo 23.16), Festa das Semanas (Deuteronômio 34.22) e Dia das Primícias dos Frutos (Números 28,26). 2. No Novo Testamento: A comemoração de Pentecostes é citada no livro dos Atos dos Apóstolos cap. 2, episódio que narra o momento em que os apóstolos de Cristo receberam os dons do Espírito Santo, logo após a subida de Jesus aos céus: “Chegando o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar.

 De repente, veio do céu um ruído, como se soprasse um vento impetuoso, e encheu toda a casa onde estavam sentados. Apareceu-lhes então uma espécie de línguas de fogo que se repartiram e pousaram sobre cada um deles. Ficaram todos cheios do Espírito Santo e começaram a falar em línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem”. (Atos dos Apóstolos 2,1-4) Pentecostes para os Judeus A origem da festa do Pentecostes é na realidade baseada em uma antiga tradição hebraica, chamada Shavuoth, e que significa “Semanas”. Para os judeus, o Pentecostes era uma celebração de agradecimento à Deus pela colheita, além de homenagear a memória do dia em que Moisés recebeu as Tábuas com as Leis Sagradas, conhecidas por Torah. 

 Ao contrário do Pentecostes cristão, o Pentecostes judeu durava sete dias e começava a partir do Pesah (festa da libertação do Egito). Com o passar do tempo, o sentido da comemoração de Pentecostes entre os judeus deixou de focar nos agradecimentos pela colheita, fixando-se exclusivamente nas festas da criação do Torah (que seriam os Dez Mandamentos, para os cristãos). 



quinta-feira, 13 de maio de 2021

Síntese Histórica do Catolicismo.

Catolicismo Para a Igreja Católica, todos aqueles que receberam o sacramento do batismo são católicos. A maioria, porém (cerca de 80%) é formada por não-praticantes. A pouca adesão às missas de domingo é um reflexo desse comportamento. Segundo A World Christian Encyclopedia, nas cidades pequenas do interior, 65% da população vai à missa de domingo, enquanto nas grandes cidades a adesão varia de 10% a 20%. De acordo com os últimos dados disponíveis, 18% participam de grupos formados por leigos (não-religiosos), como o Movimento da Renovação Carismática e as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs).

Estrutura - Em 2000, de acordo com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Igreja Católica no Brasil contava com seis cardeais, 54 arcebispos (38 na ativa e 16 eméritos), 351 bispos (268 na ativa e 83 eméritos) e mais 413 membros, entre abades, coadjutores e bispos auxiliares. Havia ainda 15 mil padres e 38 mil freiras. A Igreja se organiza no país, em 268 dioceses e mais de 8 mil paróquias. A Igreja Católica experimenta rápida ascensão no número de administrações eclesiásticas durante a primeira metade do século XX. As dioceses, que em 1900 eram 19, passam a 114 em 1940. No entanto, a influência do catolicismo é forte desde o descobrimento. Ordens e congregações religiosas assumem, já no período colonial, os serviços nas paróquias e nas dioceses, a educação nos colégios e a catequização indígena.

Comunidades Eclesiais de Base - As CEBs são grupos formados por leigos que se multiplicam pelo país após a década de 60, sob a influência da Teologia da Libertação. Curiosamente, foram idealizadas pelo cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro, dom Eugênio Sales, integrante da corrente católica mais conservadora. Com o decorrer do tempo, as CEBs vinculam o compromisso cristão à luta por justiça social e participam ativamente da vida política do país, associadas a movimentos de reivindicação social e a partidos políticos de esquerda. Um dos principais teóricos do movimento é o ex-frade brasileiro Leonardo Boff. Apesar do declínio que experimentam nos anos 90, continuam em atividade milhares de núcleos em todo o país. Em 2000, de acordo com pesquisa do Instituto de Estudos da Religião (Iser), do Rio de Janeiro, existem cerca de 70 mil núcleos de Comunidades Eclesiásticas de Base no Brasil.

Renovação Carismática Católica - De origem norte-americana, o movimento carismático chega ao Brasil em 1968, pelas mãos do padre jesuíta Haroldo Hahn, e retoma valores e conceitos esquecidos pelo racionalismo social da Teologia da Libertação. Os fiéis resgatam práticas como a reza do terço, a devoção à Maria e as canções carregadas de emoção e louvor. A RCC valoriza a ação do Espírito Santo - uma das formas de Deus, na doutrina cristã, expressa no Mistério da Santíssima Trindade -, o que aproxima o movimento de certo modo, dos protestantes pentecostais e dos cristãos independentes neopentecostais. Ganha força principalmente no interior e entre a classe média. Em 2000, soma 8 milhões de simpatizantes, representados em 95% das

dioceses, na forma de grupos de oração. Desse total, 2 milhões são jovens entre 15 e 29 anos, atraídos pela proposta renovadora e alegre, embalada pelas canções de padres cantores, como Marcelo Rossi, religioso paulistano que se torna fenômeno de mídia em 1998 com o lançamento do CD Músicas para Louvar o Senhor.

A Igreja Católica no Brasil - Até meados do século XVIII, o Estado controlava a atividade eclesiástica na colônia, responsabilizando-se pelo sustento da Igreja Católica e impedindo a entrada de outros cultos no Brasil, em troca de reconhecimento e obediência. Em 1750, o agravamento dos conflitos entre colonos e padres por causa das tentativas de escravização dos índios leva à expulsão dos jesuítas pelo marquês de Pombal. No entanto, só em 1890, após a proclamação da República, ocorre a separação entre Igreja e Estado, ficando garantida a liberdade religiosa. A partir de 1930, o projeto desenvolvimentista e nacionalista de Getúlio Vargas incentiva a Igreja a valorizar a identidade cultural brasileira, o que resulta na expansão de sua base social para as classes médias e as camadas populares. A instituição apoia a ditadura do Estado Novo, em 1937, a fim de barrar a ascensão da esquerda. Em 1952 cria-se a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a primeira agremiação episcopal desse tipo no mundo, idealizada por dom Hélder Câmara, para coordenar a ação da Igreja. No fim dos anos 50, a preocupação com as questões sociais fortalece movimentos como a Juventude Universitária Católica (JUC). Desse movimento sai, em 1960, a organização socialista Ação Popular (AP).

Durante a década de 60, a Igreja Católica, influenciada pela Teologia da Libertação, movimento formado por religiosos e leigos que interpreta o Evangelho sob o prisma das questões sociais, atua em setores populares, principalmente por meio das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). A instalação do regime militar de 64 inaugura a fase de conflitos entre Igreja e Estado. O auge da crise acontece em 1968, com a implantação do Ato Institucional n° 5 (AI-5), quando grande número de católicos se alia aos grupos oposicionistas, de esquerda, para lutar contra a repressão e os abusos que violam a ordem jurídica e os direitos humanos. A ação é intensa nos anos 70.

A partir dos anos 80, com o papa João Paulo II, começa na Igreja o processo da romanização. O Vaticano controla a atividade e o currículo de seminários, e diminui o poder de algumas dioceses, como a de São Paulo - comandada na época pelo cardeal-arcebispo dom Paulo Evaristo Arns, afinado com os propósitos da Teologia da Libertação, que a Santa Sé pretende refrear. Após o engajamento da Igreja na luta pela redemocratização, nos anos 70 e 80, os movimentos mais ligados à Teologia da Libertação cedem espaço, a partir da década de 80, à proposta conservadora da Renovação Carismática.

ALGUMAS DATAS, FATOS HISTÓRICOS DE ÉPOCA E DOUTRINAS DA IGREJA CATÓLICA

1950 - Dogma da presença real e corporal de Maria no Céu (Ascensão)

1908 - Pio X anula qualquer matrimônio efetuado sem sacerdote romano

1870 - Dogma da infalibilidade papal

1864 - Condenação da separação da Igreja do Estado

1854 - Dogma da imaculada concepção de Maria

1600 - Invenção do Escapulário (bentinhos)

1546 - Introdução dos livros apócrifos

1546 - Doutrina que equipara a tradição com a Bíblia

1415 - Eliminação do vinho na comunidade

1316 - Instituição da reza da "Ave Maria"

1245 - Uso das campainhas nas missas

1229 - Proibição da leitura da Bíblia

1220 - Adoração da hóstia

1215 - Dogma da transubstanciação

1215 - Criou-se a confissão auricular

1200 - O pão da comunhão foi substituído pela hóstia

1190 - Venda de "Indulgências"

1184 - Instituição da "Santa Inquisição"

1090 - Invenção do rosário

1076 - Dogma da infalibilidade da Igreja

1074 - Celibato sacerdotal

1003 - Instituição da festa dos "fiéis defuntos"

993 - Canonização dos santos

890 - Culto a São José (Protodulia)

850 - Uso da água benta

783 - Adoração das imagens e relíquias

754 - Doutrina do poder temporal da Igreja

709 - Obrigatoriedade de se beijar os pés do "Bispo Universal"

606 - Bonifácio III se declara Bispo Universal, "Papa"

 

quarta-feira, 12 de maio de 2021

Família desejo de Deus

 O propósito dessa exortação apostólica não é tanto tratar dos elementos doutrinas do matrimônio, em si mesmo, embora, constitua ele a sua raiz e o seu constante alimento, mas sim interpretar a solicitude maternal da Igreja pela família e dar indicações adequadas para uma renovação pastoral nesse campo.

Todavia, parece-me importante pôr em evidência o que o Santo Padre João Paulo II diz no número 11: “do pacto de amor conjugal (...) o homem e a mulher aceitam a comunhão íntima de vida e de amor, desejada por Deus”.

No número 18, ele diz: “princípio e força da comunhão, pois sem o amor a família não é uma comunhão de pessoas, da mesma forma, sem o amor a família não pode viver, crescer e aperfeiçoar-se como comunhão de pessoas” e consequentemente isso vale para o matrimônio.

Em seguida, o Santo Padre esclarece: “o amor entre o homem e a mulher no matrimônio e, de forma derivada e mais ampla, o amor entre os membros da mesma família (...) está animado e impulsionado por um dinamismo interior e incessante que conduz a família a uma comunhão cada vez mais profunda e intensa, fundamento e alma da comunhão conjugal e familiar”. E, pouco depois, o Santo Padre afirma: “O amor que anima as relações interpessoais dos diversos membros da família constitui a força interior que plasma e vivifica a comunhão e a comunidade familiar”.

É fácil perceber, assim que a chave de leitura e compreensão da comunhão de vida e de amor conjugal e sempre o amor, elemento único e resolutivo da comunhão conjugal.

O matrimônio parece ser simplesmente impensável e impraticável sem o amor. Além disso, atribui-se uma atenção especialíssima à “pessoa”, chamada a viver o diálogo de amor no matrimônio. E isto só faz ressaltar a perspectiva eminentemente personalista que ilumina toda a abordagem desta Exortação apostólica. Dessa forma, penso, que o amor conjugal entendido como “princípio e força” revela a essencialidade do amor conjugal no matrimônio por meio do consentimento e, por conseguinte a sua relevância jurídica.



Orar com Simplicidade.

  Ao começar a ler um livro sobre a oração, pergunto-me sempre: o que me poderá dizer ou ensinar de novo o autor, sobre a teoria e a prática da oração, visto que o tema já foi tratado por tantas pessoas e a partir de tão variados pontos de vista?

 Ninguém duvida da importância da oração. Tenho perguntado a muitas pessoas; rezar é importante? Todas têm respondido que não se pode viver sem oração, que rezar é a atividade mais importante da Igreja, que sem a oração não há vida espiritual nem comunhão com Deus.

 O homem de oração sabe que estar diante de Jesus é estar na disposição de descobri-lo em sua vida e em sua caminhada porque entrever o objetivo final. Estar com Ele, ouvir a sua voz suave e sempre amável em nosso coração e em nossa vida, em sua Palavra e em seus mensageiros é sempre o melhor caminho para conviver na presença do nosso Deus, a Trindade.

 A oração mais profunda, mais pessoal, mais interior, mais mística, não é aquela que usa os artifícios de uma cultura sofisticada; ela não precisa de conceitos complicados nem de linguajar enfeitados. Ela não usa métodos refinados acessíveis somente depois de longo treinamento. Muito pelo contrário, ela é simples, e de uma simplicidade somente acessível aos simples.

 Como constatação, descobri que os grandes místicos da Igreja em geral, e os Padres do deserto em particular, cultivavam uma espiritualidade basicamente cristã. É certo que em suas expressões e modalidades radicalizaram muitas virtudes e valores, mas para eles isso estava na lógica do batismo, e não na de uma vida cristã ‘superior’.

 O autor quer com este crepúsculo, é afinar o instrumento humano --- o interlocutor de Deus --- nesse diálogo amoroso que é a oração; afinar as cordas da lira para o dom da oração a quem ora.

 Agora, é preciso, leitor amigo, que tu mesmo experimentes a simplicidade e clareza deste guia sobre a oração, através de uma leitura e meditação calma e atenta.



A Misericórdia é Deus!

  A misericórdia segundo a perspectiva bíblica, de modo a aprender a misericórdia ouvindo aquilo que o próprio Deus nos ensina com a sua Palavra. Comecemos pelo Antigo Testamento, que nos prepara e nos conduz à revelação plena de Jesus Cristo, no qual em modo realizado se revela a misericórdia do Pai.

  Na Sagrada Escritura, o Senhor é apresentado como “Deus misericordioso”. É esse o seu nome, através do qual Ele nos revela, por assim dizer, a sua face e o seu coração. Ele mesmo, como narra o Livro do êxodo, revelando-se a Moisés, se auto define assim: “O Senhor, Deus misericordioso e piedoso, lento para a ira e rico de amor e de fidelidade” (34, 6). Também em outros textos encontramos essa fórmula, com algumas variantes, mas sempre a insistência é colocada sobre a misericórdia e sobre o amor de Deus que nunca se cansa de perdoar (Jo 4, 2; Gl 2, 13; Sal 86, 15; 103, 8; 145, 8; Ne 9, 17). Vejamos juntos, uma por uma, estas palavras da Sagrada Escritura que nos falam de Deus.

  O Senhor é “misericordioso”: esta palavra evoca uma atitude de ternura como aquela de uma mãe para com o filho. De fato, o termo hebraico usado pela Bíblia faz pensar nas vísceras ou também no ventre materno. Por isso, a imagem que sugere é aquela de um Deus que se comove e se amolece por nós como uma mãe quando toma nos braços o seu filho, desejosa somente de amar, proteger, ajudar, pronta a doar tudo, também a sim mesma. Essa é a imagem que esse termo sugere. Um amor, portanto, que se pode definir em bom sentido “visceral”.

  Depois está escrito que o Senhor é “piedoso”, no sentido de que faz graça, tem compaixão e, na sua grandeza, se inclina sobre quem é mais frágil e pobre, sempre pronto a acolher, a compreender, a perdoar. É como o pai da parábola reportada pelo Evangelho de Lucas (Lc 15, 11-32): um pai que não se fecha no ressentimento pelo abandono do filho menor, mas, ao contrário, continua a esperá-lo – gerou-o – e depois corre ao seu encontro e o abraça, não lhe deixa nem mesmo terminar a sua confissão – como se lhe cobrisse a boca – tão grande é o amor e a alegria por tê-lo reencontrado; e depois vai também chamar o filho mais velho, que está irritado e não quer fazer festa, o filho que permaneceu sempre em casa, mas vivendo como um servo mais que como um filho, e justamente sobre ele o pai se inclina, convida-o a entrar, procura abrir o seu coração ao amor, para que ninguém fique excluído da festa da misericórdia. A misericórdia é uma festa!

  Deste Deus misericordioso é dito também que é “lento à ira”, literalmente, “longo de respiro”, isso é, com a respiração ampla de paciência e de capacidade de suportar. Deus sabe esperar, os seus tempos não são aqueles impacientes dos homens; Ele é como o sábio agricultor que sabe esperar, dá tempo para a semente boa crescer, apesar das ervas daninhas (Mt 13, 24-30).

  E, por fim, o Senhor se proclama “grande no amor e na fidelidade”. Como é bela essa definição de Deus! Aqui está tudo. Porque Deus é grande e poderoso, mas esta grandeza e poder se desdobram em nos amar, nós assim tão pequenos, tão incapazes. A palavra “amor” aqui utilizada indica o afeto, a graça, a bondade. Não é o amor da telenovela…. É amor que dá o primeiro passo, que não depende dos méritos humanos, mas de uma imensa gratuidade. É a solicitude divina que nada pode parar, nem mesmo o pecado, porque sabe ir além do pecado, vencer o mal e perdoá-lo.

  Uma “fidelidade” sem limites: eis a última palavra da revelação de Deus a Moisés. A fidelidade de Deus nunca falha, porque o Senhor é o Guardião, como diz o Salmo, não dorme, mas vigia continuamente sobre nós para nos levar à vida:

“Não deixará vacilar os teus pés, não adormecerá o teu guardião.

Não se adormecerá, não pegará no sono o guardião de Israel.

O Senhor te protegerá de todo mal: ele protegerá a tua vida.

O Senhor te protegerá quando saíres e quando entrares, agora e para sempre” (121, 3-4. 7-8).

  E esse Deus misericordioso é fiel na sua misericórdia e São Paulo diz uma coisa bonita: se tu não lhe é fiel, Ele permanecerá fiel, porque não pode renegar a si mesmo. A fidelidade na misericórdia é justamente o ser de Deus. E por isso Deus é totalmente e sempre confiável. Uma presença sólida e estável. É essa a certeza da nossa fé. E então, neste Jubileu da Misericórdia, confiemo-nos totalmente a Ele e experimentemos a alegria de sermos amados por esse “Deus misericordioso e piedoso, lento à ira e grande no amor e na fidelidade”.



A oração é algo natural do homem.

   A oração é algo natural do homem, como falar ou suspirar, ou olhar, ou como latejar do coração enamorado.

  Na realidade é também uma queixa. Nossa oração não é mais do que estabelecer contato com Deus. É uma comunicação com Deus e não necessita ser com palavras e nem mesmo com a mente.

  A gente pode se comunicar com o olhar, com o sorriso ou com os suspiros, ou contemplar o céu, ou beber a água. De fato, todos os nossos atos corporais são oração.

  Nosso corpo formula uma profunda ação de graças em suas entranhas, quando sedento, recebe um copo d’água. Quando, num dia de calor, mergulhamos num rio fresco, toda nossa pele canta o hino de ação de graças ao Criador, ainda que esta seja uma oração irracional, que se faz sem nosso consentimento e às vezes mesmo apesar de nós. O trabalho é uma oração existencial. Deus nos envolve por todas as partes como a atmosfera.

  A razão pela qual a gente não costuma experimentar a presença de Deus é porque estamos acostumados a que toda experiência nos venha de fora, e essa experiência é de dentro.

  Estamos voltados para o exterior, pendentes da sensação de fora e então nos passam inadvertidos os toques e as vozes de dentro.




Desenvolvimento Cognitivo.

   A psicologia vem influenciando a educação através de algumas teorias, especialmente as relacionadas ao desenvolvimento cognitivo e afetivo. É com base na psicologia que busca-se algumas compreensões e soluções para as problemáticas educativas.

  Quando há uma relação entre indivíduos, surgem vários sentimentos: amor, medo da perda, ciúmes, saudade, raiva, inveja; essa mistura de sentimentos gera a afetividade. Um indivíduo saudável mentalmente sabe organizar e lidar com todos esses sentimentos de forma tranquila e equilibrada. A qualidade de vida inclui a saúde mental, cuidar-se e cuidar do próximo é como fonte de prazer, por isso que a afetividade tem grande importância no desenvolvimento humano, pois é diretamente através dela que nos comunicamos com as nossas emoções.

  É na família que a criança aprende a lidar com os sentimentos, pois o grupo familiar está unido pelo amor e nele também acontecem discussões, momentos de raiva, de tristeza, de perdão de entendimento. A criança vivencia o ódio e o amor e aprende a perdoar e amar, preparando-se para conviver adequadamente em uma sociedade, de forma sociável. Os adolescentes também necessitam de pessoas que lhes ensinem a conviver com esses sentimentos.

  A afetividade já se inicia nos primeiros anos de vida, e os quatro primeiros anos da criança são particularmente fundamentais para a estruturação das funções cerebrais. Um bebê que passa deitado, sem estimulação física e mental, certamente apresentará sérias anomalias em sua evolução. As aptidões emocionais devem ser aprendidas e aprimoradas desde cedo, basta ensiná-las.

  Num certo sentido, temos dois cérebros, duas mentes e dois tipos diferentes de inteligência: racional e emocional. Nosso desempenho na vida é determinado pelas duas, não é apenas o quociente de inteligência, mas a inteligência emocional também conta. Na verdade, o intelecto não pode dar o melhor de si sem a inteligência emocional (GOLEMAN, 1995, p. 42).




Viver a Vida.... Como posso?

  Fiquei surpreso quando esta frase me tocou! Vivi uma experiência profunda durante uma pregação, em que falava que precisamos viver a vida.... Estas palavras me marcaram visceralmente.

  Se lhe perguntasse, como você se sente e pensa ao ler este título: Viver a vida.... Se pudéssemos partilhar, certamente ficaríamos surpresos as experiências vividas. Podemos, contudo, imaginar que alguns podem ter pensado em coisas agradáveis e outros desagradáveis.

  Algumas pessoas consideram a vida como dom recebido por Deus, e a vivem com otimismo ou muito realismo, sem desprezarem as dificuldades que lhe são próprias. Para outras pessoas a vida chega a ser um fardo pesado que mal conseguem carregar. Perdeu o sentido das coisas, nada dá certo, tudo vai de mal a pior, o que lhe resta é a murmuração e a lamentação, sem querer assumir a culpa procura um culpado pelos infortúnios cotidianos.

  Você há de admiti, que viver a vida não seja um mar de rosas, sobretudo em meio a complexidade do mundo globalizado em que vivemos. De fato, muitos se sentem estressados ou, até mesmo, deprimidos.

  Em falar de estresse, podemos pensar logo nos fatores de tensão com os quais estamos em contato e, para isso, é preciso uma escala de valores para amenizar o impacto destes fatores em nossa vida.

  No entanto, algumas pessoas são mais sensíveis a tais impactos e sofrem mais que outras suas consequências. O que não quer dizer que tudo esteja perdido ou que a vida seja, de fato, insuportável.

  Posso afirmar que é possível conviver com esta (super) sensibilidade e também com o impacto dos fatores estressantes e depressivos.

  Penso que é preciso aprender que a maioria dos acontecimentos cotidianos é resultado de uma realidade complexa e de variáveis que não estão sob nosso controle. A saber, quando caminhamos nas ruas de pé ou de carro. Por mais que estejamos atentos e sejamos cuidadosos podemos sofrer acidentes ou ser assaltados.

  Todavia, podemos prevenir para não precisar remediar. Já pensou naquele passeio tão esperado no próximo final de semana? Para diminuir o impacto do estresse é preciso planejar adequadamente: onde, quando, com quem.... Que tipo de roupa é preciso levar, onde é que se vai comer, dormir.... Isto diminuirá as surpresas desagradáveis que poderão transformar seu passeio num pesadelo.

  Em última análise, poderíamos dizer que a expressão viver a vida não pode ser reduzida a uma atitude passiva, entendida como algo que vem de fora e que pode ser bom ou ruim, agradável ou desagradável.... Implica muito mais em agir de maneira consciente para produzir e aproveitar o máximo de tudo o que é agradável e para diminuir o impacto dos estressores que nos chegam a cada dia.

  Concluindo tudo isto nos diria Thomas Merton: “Isto me escolhe para ser a pessoa que sou e para ocupar o lugar e a função particulares que ocupo, para ser eu mesmo no sentido de escolher tender para o que Deus quer que eu seja, e orientar toda a minha vida para ser a pessoa que Ele ama”.




A Sufrágio Ilusão da Esquerda.

   Os homens acreditavam que o estabelecimento do sufrágio universal garantia a liberdade dos povos. Mas infelizmente esta era uma grande ilusão e a compreensão da ilusão, em muitos lugares, levou à queda e à desmoralização do partido radical. Os radicais não queriam enganar o povo, pelo menos assim asseguram as obras liberais, mas neste caso eles próprios foram enganados. Eles estavam firmemente convencidos quando prometeram ao povo a liberdade através do sufrágio universal. Inspirados por essa convicção, eles puderam sublevar as massas e derrubar os governos aristocráticos estabelecidos. Hoje depois de aprender com a experiência, e com a política do poder, os radicais perderam a fé em si mesmos e em seus princípios derrotados e corruptos. Mas tudo parecia tão natural e tão simples: uma vez que os poderes legislativo e executivo emanavam diretamente de uma eleição popular, não se tornariam a pura expressão da vontade popular e não produziriam a liberdade e o bem-estar entre a população? Toda decepção com o sistema representativo está na ilusão de que um governo e uma legislação surgidos de uma eleição popular deve e pode representar a verdadeira vontade do povo. Instintiva e inevitavelmente, o povo espera duas coisas: a maior prosperidade possível combinada com a maior liberdade de movimento e de ação. Isto significa a melhor organização dos interesses econômicos populares, e a completa ausência de qualquer organização política ou de poder, já que toda organização política se destina à negação da liberdade. Estes são os desejos básicos do povo.

 Os instintos dos governantes, sejam legisladores ou executores das leis, são diametricamente opostos por estarem numa posição excepcional. Por mais democráticos que sejam seus sentimentos e suas intenções, atingida uma certa elevação de posto, veem a sociedade da mesma forma que um professor vê seus alunos, e entre o professor e os alunos não há igualdade. De um lado, há o sentimento de superioridade, inevitavelmente provocado pela posição de superioridade que decorre da superioridade do professor, exercite ele o poder legislativo ou executivo. Quem fala de poder político, fala de dominação.

  Quando existe dominação, uma grande parcela da sociedade é dominada e os que são dominados geralmente detestam os que dominam, enquanto estes não têm outra escolha, a não ser subjugar e oprimir aqueles que dominam. Esta é a eterna história do saber, desde que o poder surgiu no mundo. Isto é, o que também explica como e porque os democratas mais radicais, os rebeldes mais violentos se tornam os conservadores mais cautelosos assim que obtêm o poder. Tais retratações são geralmente consideradas atos de traição, mas isto é um erro. A causa principal é apenas a mudança de posição e, portanto, de perspectiva.

  Na suíça, assim como em outros lugares, a classe governante é completamente diferente e separada da massa dos governados. Aqui, apesar da constituição política ser igualitária, é a burguesia que governa, e é o povo, operários e camponeses, que obedecem a suas leis. O povo não tem tempo livre

  ou educação necessária para se ocupar do governo. Já que a burguesia tem ambos, ela tem de ato, se não por direito, privilégio exclusivo. Portanto, na Suíça, como em outros países a igualdade política é apenas uma ficção pueril, uma mentira. Separada como está do povo, por circunstâncias sociais e econômicas, como pode a burguesia expressar, nas leis e no governo, os sentimentos, as ideias, e a vontade do povo? É possível, e a experiência diária prova isto. Na legislação e no governo, a burguesia é dirigida principalmente por seus próprios interesses e preconceitos, sem levar em conta os interesses do povo. É verdade que todos os nossos legisladores, assim como todos os membros dos governos cantonais são eleitos, direta ou indiretamente, pelo povo.

  É verdade que, em dia de eleição, mesmo a burguesia mais orgulhosa, se tiver ambição política, deve curvar-se diante de sua Majestade, a Soberania Popular. Mas, terminada a eleição, o povo volta ao trabalho, e a burguesia, a seus lucrativos negócios e às intrigas políticas. Não se encontram e não se reconhecem mais. Como se pode esperar que o povo, oprimido pelo trabalho e ignorante da maioria dos problemas, supervisione as ações de seus representantes? Na realidade, o controle exercido pelos eleitores aos seus representantes eleitos é pura ficção, já que no sistema representativo, o controle popular é apenas uma garantia da liberdade do povo, é evidente que tal liberdade não é mais do que ficção.



segunda-feira, 10 de maio de 2021

Contemporaneidade do Narcisismo.


   O termo Narcisismo remete ao mito de Narciso, que se apaixonou pela própria imagem. A pessoa com características narcisistas é percebida como um suposto adorador de si mesmo, apresentando elevada autoestima e idealização de si mesmo (Roudinesco, 1999 e Figueredo, 2003).

   Porém, os narcisistas, conforme Lasch (1987) se caracterizam pela superficialidade emocional, medo da intimidade, hipocondria, pseudo auto percepção, promiscuidade sexual, horror à velhice e à morte. Além disso, para o mesmo autor são descrentes quanto à possibilidade de transformar o futuro, desprezam o passado e vivem para o momento, perdendo o sentido da continuidade histórica.

   O que inspira a preocupação constante com a própria pessoa é a ausência de um estável amor interior por si mesmo, obrigando-a a usar os outros para confirmá-lo. Assim preocupações como, “devo ser importante”, apontam que algo está errado com o seu amor por si mesmo, vive dominado pela ansiedade, pela dependência, pela necessidade de aprovação pelo outro. Diante das inevitáveis frustrações que essa dinâmica lhe custa, não tem sido raro deparar-se com pessoas com tais características dentro de uma prática clínica em que pode ser encontrado por meio de queixas como: exigência com o corpo e a estética, vazio interior e depressão.

   Assim, concorda-se com o pensamento de Zimerman (1999) em que afirma que as pessoas que sofrem de vazios, tem uma ausência de reconhecimento de suas emoções, em realidade, elas estão cheias de buracos negros, resultantes de uma rígida carapaça, uma “concha autística”, que se forma contra a ameaça de um sofrimento provindo de frustrações impostas pela realidade exterior.

   Discorrer sobre o narcisismo é, sem dúvida alguma, um grande desafio por ser um dos temas mais relevantes dentro da psicopatologia atual. O conceito de narcisismo passou por uma evolução de diferentes enfoques dentro da teoria psicanalítica e contou com a contribuição de diversos autores.

   De maneira geral, quando se faz menção ao narcisismo, logo se vem à mente um espectro de significados, mas destacam-se palavras ligadas à perfeição, vaidade, autossuficiência, superioridade, egoísmo entre outros. Tal a importância do conceito que, conforme apontado por Zimerman (1999) e Figueiredo (2003), apreende-se que tanto o narcisismo quanto o investimento objetal mostram-se fundamentais para a formação do sujeito, uma vez que são os investimentos narcísicos, oriundos dos cuidados maternos, que confirmarão ou não à criança o seu lugar como objeto de amor, estando, portanto, na base do que conhecemos por autoestima.

   Faz-se necessário, esclarecer que existe uma diferenciação entre a etapa evolutiva normal vivida por todo ser humano, que conferem ao homem

características sadias, que estão relacionadas com a formação da autoestima, de um quadro de narcisismo patológico ou transtorno narcisista, que confere acarreta ao indivíduo uma carga de sofrimento emocional. Para Macckinon, Michels e Buckley (2008) o narcisismo organiza a personalidade desde o saudável até o patológico, sendo que sua face saudável é fundamental para manter a convicção de que a pessoa é valiosa e que aceita aplausos e recompensas por suas conquistas e realizações, ao mesmo tempo em que compartilha e aceita o papel das outras pessoas neste sucesso.

   Associado a isso, já quando há algum tipo de transtorno narcísico, corrobora-se as ideias de Roudinesco (1999) na qual sugere que o sofrimento psíquico manifesta-se sob a forma de depressão, em que se misturam a tristeza, a apatia, a busca da identidade e o culto a si mesmo. A este respeito, concorda-se com Berlinck (2008) em que se acredita que a depressão se tornou um fenômeno frequente no mundo moderno a ponto de ser considerada como uma reação natural deste tempo.

   De acordo com os autores Roudinesco (1999) e Wanderley (1999) as condições sociais predominantes da atualidade tendem a desenvolver traços narcisistas, em vários graus, em todos. Estas condições recursivamente moldaram as famílias, que por sua vez, são a matriz de identidade do homem moldando, assim, uma sociedade narcisista, depressiva, apática e vazia.

   A este respeito, concorda-se com Figueiredo (2003) quando este aponta para os fenômenos sociais e psíquicos que se está experimentando no século XXI: “A ameaça de destruição da humanidade cedeu lugar a uma cultura do individualismo esquizóide, na qual, entre mortos e feridos, todos nos salvamos, cada um na sua e nada entre nós” (p. 52-53). Com isso, evidencia-se o inegável sofrimento subjacente destas pessoas que apresentam alta insatisfação, uma enorme inveja do sucesso dos outros e um grande vazio interno.

   Nesse sentido, Wanderley (1999) assinala que o homem narcísico se diz tolerante, permissivo e liberado, mas em contrapartida diante de tanta liberdade, na busca incessante do prazer, sente-se vazio. Além disso, nesta perspectiva esse sujeito torna-se e indiferente a tudo e a todos que não lhe dizem respeito diretamente.

   Não obstante, suas ocasionais ilusões de onipotência, o narcisista depende dos outros para validar sua autoestima. Ele não consegue viver sem uma audiência que o admire, mesmo com sua aparente liberdade dos laços familiares e dos constrangimentos. Essa inclinação para o mundo externo não o impede de ficar só consigo mesmo ou até mesmo de se exaltar em sua individualidade. Pelo contrário, ela contribui para sua insegurança, que ele somente pode superar quando vê seu “eu grandioso” refletido nas ações e nas atenções das outras pessoas, ou se ligar àqueles que irradiam sua celebridade, poder e carisma. “Para o narcisista, o mundo é um espelho, ao passo que o individualista áspero o via com o um deserto vazio, a ser modelado segundo seus próprios desígnios” (Lasch 1983 p. 30 citado por Wanderley 1999).

De fato, a lógica narcisista baseia-se na busca de um ideal. O uso do mecanismo da idealização de si mesmo e do outro, justifica-se pela necessidade constante da fuga da realidade interna, qual seja, a depressão. Para Mackinon et al (2008), essa categoria psicopatológica surgiu com o esforço dos psicoterapeutas em compreender esse grupo de pacientes considerados difíceis, uma vez que não eram considerados psicóticos e nem enquadravam-se na perspectiva neurótica. Estes pacientes são frequentemente vistos pelo mundo com uma alta capacidade funcional e sem psicopatologia óbvia, já que suas questões, na maioria das vezes, são internas e relacionadas com a forma de enxergarem a si mesmo e aos outros.

   Além disso, não é possível falar em narcisismo sem trazer para esta reflexão os conceitos de narcisismo primário e secundário, propostos por Freud. Em “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914), Freud concebeu a ideia de que o sujeito toma seu próprio corpo como sendo ao mesmo tempo fonte e objeto da libido sexual. Assim, o narcisismo primário é uma etapa evolutiva que ocorre após a etapa do autoerotismo, e baseia-se no investimento que objetos externos fazem ao bebe, porém ainda não há uma diferenciação entre eles.

De acordo com Mackinon et al (2008) enquanto patologia narcisista existe um continuum desde a forma branda até as mais graves. O paciente narcisista mais comprometido apresenta uma oscilação entre dois estados do sentimento: grandiosidade e um senso de insignificância. Destaca-se a grande contradição nestes pacientes se por um lado precisam do outro como fonte de gratificação e admiração constantes, por outro lado, evitam qualquer intimidade e interesse na relação.

   A este respeito, recorre-se ao conceito de posição narcisista, proposto por Zimerman (1999) que auxilia na compreensão da construção de uma configuração narcisista que cada sujeito vivencia, e que depois toma seus contornos e singularidades próprias, de acordo com a constituição do sujeito e da interação deste com o ambiente. Esta posição narcisista pela qual todos passam, refere-se ao momento do desenvolvimento no qual ainda não se estabeleceu a diferenciação entre o eu e o outro.

De acordo com Zimerman (1999), a posição narcisista, é um estado necessário do desenvolvimento psíquico, formado por diversos fatores psíquicos (tais como defesas, angustias entre outros), vivenciada logo no início da vida, que terá repercussões na construção da sua personalidade até a vida adulta. Esta posição e marcada por uma total indiferenciação do bebê em relação a mãe. Todo bebê passa por uma fase de simbiose com a mãe em que ele “imagina” que a sua genitora é uma extensão dele, ou seja, para o bebê ele e a mãe estão fundidos. Durante esta fase de indiferenciação o infante pode formar uma ilusão onipotente de uma independência absoluta, já que tudo o que ele necessita e deseja, encontra-se nesta relação simbiótica.

   No entanto, no decorrer do desenvolvimento o contato com realidade vai rompendo com essa onipotência e evidenciando que o que existe, na verdade, é um estado de absoluta dependência. Por isso, a separação da mãe, por meio

da entrada de um terceiro na relação mãe-bebê torna-se fundamental para o estabelecimento de frustrações necessárias em direção ao reconhecimento e aceitação da incompletude e falta. Se o bebê não passa por este processo, ou seja, se ele permanece na ilusão da independência e completude, ele poderá ter dificuldades em suportar a realidade. Neste sentido, ele pode estar constantemente buscando aquela satisfação perdida, quais sejam, sentir-se poderoso e indispensável.

   Para o sujeito narcisista, reconhecer que necessita de outros, demanda sofrimento. O sujeito pode então recorrer a mecanismos de defesa como negação e onipotência para fugir dessa realidade, para não ver ruir sua autoestima e sentimento de identidade. De modo geral, o sujeito passa pela vida tentando fugir do que Zimerman (1999) chama de verdades penosas, quais sejam: reconhecer que não é o único importante, que sofre dependência, perdas e separações. Esta necessidade poderá ser ampliada para tudo o revele um limite, como a morte, o envelhecimento e tantos “Nãos” que receberá ao longo da vida.

Associado a isto, elucida-se a dificuldade destes sujeitos em reconhecer seus limites: envelhecimento, morte, perda. A este respeito cita-se como exemplo: Paciente J, 25 anos, ao agendar uma sessão para a terapeuta pediu a mesma um horário que já tinha outra pessoa marcada. Indignado o referido paciente solicitou que a profissional desmarcasse com o outro cliente para que fosse atendido. Este relato evidencia a dificuldade do mesmo em lidar com limite, não ser o único importante para a terapeuta e sentir-se desprivilegiado.

   Nos transtornos narcisistas, evidencia-se um lado regressivo, por meio de características com baixa tolerância a frustração, uso de negações, inveja entre outros. Assim, é possível que o sujeito transforme sua insegurança e dependência em autossuficiência e onipotência. Neste sentido, evidencia-se o que Zimerman (1999) chama de núcleo de simbiose e ambiguidade.

Na relação com psicoterapeuta estes pacientes fazem uso de demasiada identificação projetiva, ou seja, uma forma de comunicação inconsciente em que aspectos do próprio sujeito são negados e atribuídos ao psicoterapeuta. Nesse sentido, pode-se apontar para a vinheta clínica do caso clínico da jovem, 21 anos, recém graduada e que não passou em um processo seletivo para uma vaga de emprego na qual sentia que tinha todas as condições para assumir: eu não acredito que não passei, era o emprego dos meus sonhos e sempre me dediquei para isto. Acho que você já sabia que eu não iria passar. Acho que agora vou fazer outra faculdade e virar estagiária.

   Complementando que já foi apontado até aqui é possível conhecer que podem ser delineadas outras características desta personalidade narcisista, tais como: possuir a tendência a generalizar alguma deficiência para a totalidade de sua pessoa.

Assim, pode funcionar em extremos, ou é o melhor, ou é o pior. As falhas e fracassos são sentidas como insucesso na totalidade de sua estrutura e sobre

   essa característica, aponta-se para o relato de um paciente, caso A, após um tempo de processo terapêutico: eu acho que tive um insigth (pausa), eu visualizei um monstrinho correndo, fugindo de mim, daí eu cheguei devagarinho, e cuidei dele, fiz carinho e ele se acalmou...eu penso que não preciso mais lutar contra coisas que eu criticava em mim, sou vaidoso, ambicioso, quero ser mais, melhor...talvez se eu souber dosar pode ser bom...porque se eu ficar acreditando que tudo é ruim não vou a lugar nenhum.”

No processo terapêutico torna-se importante ajudar o paciente a integrar o seu self, superando essa lógica dualista de ser ou bom ou mal. Frisa-se, ainda, a auto exigência como uma outra característica comum entre os narcisistas. A fim de satisfazer um ideal de ego e ego ideal severos, a autoestima sofre uma espécie de pressão, ficando vulnerável. O ego ideal se constitui das ambições pessoais enquanto o ideal de ego representa a necessidade do sujeito em cumprir as expectativas e ideais dos pais e da sociedade.

    A esse respeito, quando a autoestima do sujeito depende quase que exclusivamente do cumprimento da obrigação de corresponder às expectativas de si próprio ou de seus pais ou representantes, isto produz, inexoravelmente, sofrimento psíquico. Além disso, tal qual apontado por Lasch (1987) há uma profunda indiferença para com tudo que não seja interesse do próprio individuo, pois, o narciso da época atual é exigente e tirânico em relação a tudo e a todos que podem opor-se à satisfação dos seus desejos imediatos. Assim, uma configuração narcisista necessita satisfazer-se com o constante reconhecimento alheio que se torna uma espécie “alimento”. A busca incessante por riqueza, poder, inteligência, beleza entre outros, servem para as pessoas confirmarem seu valor.

Bleichmar (1983), utilizou o termo depressão narcísica para designar o quadro clínico em que, frustrações pequenas são sentidas como desamparo, humilhação e aniquilamento, por não atender as exigências do ideal de ego e ego ideal. Outra consequência da tentativa de super adaptação em relação as demandas do ego é a construção de um “falso self”, em que o sujeito afasta-se de seu verdadeiro eu, para ser aquilo eu crê que seja idealizado e desejado pelos outros e por ele mesmo. Esse “falso self” esgota facilmente o ego porque o sentimento de insatisfação é continuo, e obriga o sujeito a ultrapassar até mesmo seus limites.

   De acordo com Zimerman (1999), na construção da personalidade narcisista, geralmente existem falhas ocorridas no processo de identificação com as figuras parentais, que pode ocorrer pela apreensão do discurso parental ou imitação ou degeneração do modelo introjetado. De qualquer forma, é na relação com as figuras importantes que a criança vai percebendo as necessidades e expectativas do meio e vai moldando sua personalidade, podendo até mesmo distanciar-se de seu eu verdadeiro. Zimerman (1999) utiliza o termo personalidade “camaleônica” para designar as pessoas que se adaptam conforme o ambiente, valorizando mais as demandas externas do ambiente que

suas próprias ideias e desejos. No caso A, citado anteriormente, o paciente costumava-se sentir vulnerável e influenciável:

Sou um Maria vai com as outras, o outro é que é referência, se estou próximo de um gigante, poderoso, bem-sucedido, quero ser como ele, quando estou com um cara simples, que não se importa com isso, eu também quero ser como ele. Além disso, sinto que falo o que as pessoas gostariam de ouvir, sei agradar, fico preocupado se causei uma boa impressão, fico com medo dos erros aparecerem”.

Para que isto ocorra, é natural que falhas precoces sofridas pelo sujeito nos primeiros anos de vida, tenham prejudicado o desenvolvimento saudável de sua autoestima. Assim, a personalidade narcisista, frágil em sua confiança básica e segurança básica, passa a utilizar com frequência um jogo e comparações, para reafirmar ou descartar seu valor. Para a paciente M, 43 anos, caso B, a família dos outros sempre era melhor que a sua e desta forma passava a inferiorizar-se:

Eu praticamente não tenho família e me contentar que a minha família não me ajuda, se eu tivesse a família igual à da fulana, tudo seria diferente, tudo dá errado para mim por causa desta família, mas se eu tivesse uma família com dinheiro como a dela, eu ainda seria melhor que ela. Acho que até fazer dieta seria mais fácil.

Para o psicanalista Zimerman (1999), Narciso e Édipo estão inter-relacionados, muitas vezes, um torna-se o refúgio para o outro. Nem sempre uma regressão narcisista resulta numa fuga do Complexo de Édipo, mas sim numa nova tentativa de fazer um começo diferente, com uma base de autoestima suficiente para superar o complexo de édipo e seguir de forma mais madura e saudável. Com tudo o que foi exposto, podemos delinear a matriz, as principais defesas e a psicodinâmica desta estrutura. Para Rosenfeld (1987) o narcisismo pode ser também classificado em dois tipos:

Narcisista de “pele fina” que são aqueles que são supersensíveis, melindráveis, com uma extrema vulnerabilidade na autoestima, que se colocam num papel de vítima, para de alguma forma, assegurar o poder. Este tipo de narcisista reage com dor a tudo que parece rejeição, sensação de inferioridade e utilizam-se da ameaça suicida como uma forma de controle. Também é comum o sujeito “pele fina’ a oscilação entre estados emocionais e exige um trato especial do psicoterapeuta.

Narcisista “pele grossa”. Este tipo apresenta-se de forma mais arrogantes, prepotentes, com uma atitude defensiva e agressiva, intimidadores, insensíveis aos aspectos de dependência. Aparentam superioridade, quando na realidade, apresentam um self destrutivo. Estas pessoas funcionam a partir da “tríade maníaca”: atitude de controle, triunfo e desprezo. Na realidade essas características encobrem, dissimulam e protegem uma subjacente pele fina. Para evitar as dores das velhas e precoces feridas narcísicas, constroem uma espessa cicatriz de pele grossa. O narcisismo de pele grossa, aproveita seus

conflitos como uma força para ir atrás das coisas que deseja, sua ferida é o seu “combustível”.

   No caso do paciente A, podemos considerar seu narcisismo do tipo pele grossa, pois apesar de sua insegurança, baixa autoestima e medos de rejeição, abandono entre outros, ele transformava sua vulnerabilidade em força para lutar, superar, crescer, e ir em busca de seus sonhos e ideais. Apesar de suas feridas e conflitos, sentia-se um “guerreiro” e “não entregava os pontos” (palavras do paciente). Quando encontrava uma dificuldade transformava em desafio e buscava força para superar. Já os narcisistas de pele fina adotam uma postura de desistência na vida. Como exemplo de uma estrutura tipo pele fina, citaremos trecho da sessão da paciente S, 21anos, em sua terceira faculdade (não concluída):

“Quando eu piso nos corredores desta instituição de ensino sinto minhas pernas me puxando para fora. É como se elas me dissessem que não vou dar conta mais uma vez, aí eu prefiro nem ir mais e desistir”.

   De acordo com Zimerman (1999), os pacientes que possuem muitas características da posição narcisista que pertencem ao que se chama “pacientes de difícil acesso”, que por sua vez, evidenciam a necessidade um manejo técnico cuidadoso e especial. Torna-se importante a análise dos aspectos narcisistas, em termos de grau (moderado ou intenso), e natureza (sadia ou patológica). Compreender o perfil do paciente narcisista: a base da estruturação do paciente narcisista encontra-se na forma como se desenvolveu o apego da criança com sua mãe. Situações de precoce fracasso ambiental, como privações maternas, possessividade narcisista da mãe em relação ao filho, falhas na empatia, falhas da capacidade de frustrar a criança adequadamente, depressão materna no momento primordial do investimento do olhar e amor da mãe para com o bebê, entre outros. Tais aspectos dificultam a construção do apego saudável e trazem consequências negativas para a autoestima da criança que apresenta como resultante disso tudo, um prejuízo na construção da confiança básica, da constância objetal, da passagem da indiferenciação para a de separação e individuação e da internalização de objetos bons, com largos “vazios” no espaço psíquico (Zimerman, 2004).

   As situações que remetem a alguma forma de desamparo, constituem-se na chamada ferida narcísica que representam a vivência da dor precoce. Na tentativa de esconder a necessidade de dependência e cuidado, o medo das humilhações e abandono, o paciente narcisista, como salientado anteriormente, procura controlar as situações, usando todos os recursos que desenvolveu por compensação, tais como: os atributos de beleza, poder, status, e inúmeras outras capacidades valorizadas por nossa cultura. Porém, permanece sob tensão, pois vive em luta constante para não sucumbir a depressão analítica, que remete ao primitivo desamparo e falta da figura materna. A principal angústia da estruturação narcisista que é a denominada de desamparo, que leva a ansiedade de aniquilamento e abandono.

Para o paciente narcisista conectar-se com a realidade interna é algo extremamente penoso, pois reconhecer as suas limitações e aceitação da realidade, pode se constituir uma ameaça ao seu ego frágil. Estes pacientes possuem ainda, um baixo limiar de tolerância a frustrações vindas do psicoterapeuta, pois teme decepcionar o mesmo e, assim, ser abandonado como foi percebido outrora na sua relação com a mãe.

No processo terapêutico destes pacientes, por meio do setting e do reconhecimento da relação transferencial – contratransferencial, que o terapeuta ajuda o paciente a distinguir as frustrações necessárias das desnecessárias e inadequadas. O terapeuta precisa, então, deixar bem claro o enquadre deste processo, pois é muito comum que o paciente narcisista tente desvirtuar o setting instituído e fazer com que o terapeuta quebre algumas regras técnicas. O paciente tenta fazer essa transgressão, pois ele precisa sentir que é diferente dos outros pacientes, ele quer sentir-se mais especial que os outros, pois isto seria uma prova do amor do terapeuta. Utiliza para isso, sedução, chantagem e desafios para tirar o terapeuta do seu papel e sentir assim mais igual e menos dependente. Pode-se citar novamente o caso do paciente A que, no primeiro contato telefônico deixou claro que por ter uma profissão reconhecida socialmente e que o tornava muito ocupado, esperava que a terapeuta conseguisse um horário especial para ele, que a terapeuta precisaria se esforçar para encaixar sua sessão. Assim ele se apresenta e se coloca nas relações, esperando ser tratado com privilégios, para confirmar seu frágil sentimento de superioridade.

Assim, consideramos importante enfatizar a necessidade da preservação da assimetria da relação terapêutica, uma vez que para o paciente narcisista é indispensável a colocação de limites, o estabelecimento da hierarquia e reconhecimento das diferenças entre ele e o outro. A este respeito, trazemos o caso da paciente M, 43 anos (Caso B, também já citada anteriormente) que insiste em chamar a terapeuta de “amiga”, por diversas vezes, no setting, foi colocado que esta relação não é uma interação de amizade e a mesma insistiu em chamá-la desta forma como uma tentativa de burlar a relação hierárquica entre elas.

  A construção de uma aliança terapêutica é fundamental, incluindo aquilo que Bion chama de “pessoa real do analista”, pois o terapeuta está servindo como um novo modelo de identificação, que vai oferecer novas formas de enfrentar as angustias, funcionar como continente, e ajudar o paciente a pensar sobre as verdades. O terapeuta deve auxiliar o paciente a realizar uma integração do self, mostrando as conquistas e potencialidades dos pacientes bem como aquilo que é desafio para ele, ou seja, integrar a parte adulta e a parte infantil.

Com sua atividade interpretativa o psicoterapeuta propicia o crescimento mental do paciente. Para isso é necessário que o terapeuta esteja atento para seus próprios aspectos narcisistas, e não formar conluios inconscientes. O já citado paciente do caso A, tentava “seduzir” a terapeuta dizendo, por exemplo,

   que em sua família havia a prática de procurar sempre os melhores profissionais da cidade, que só se tratavam com pessoas muito competentes. Já a paciente do caso B, afirma que a vida dela é outra depois que se começou a se consultar com a melhor terapeuta da sua vida. Por esses discursos vemos a necessidade do paciente de confirmar para si mesmo sua importância com a ideia de ir ao que ele espera ser “melhor” terapeuta. Ao mesmo tempo comunica sua expectativa de que o profissional se dedique mais ao paciente e atenda suas expectativas. Um misto de reconhecimento, expectativas e autoafirmação, além de exibicionismo.

É muito comum no início do tratamento que o paciente narcisista faça uma idealização necessária do terapeuta, que se transforma no decorrer do processo. Da mesma forma, o paciente gostaria que o terapeuta o idealizasse, pois na logica psíquica essa seria uma garantia de não separação ou abandono. O terapeuta deve estar atento também as resistências e contra-resistenciais, pois esta é uma indicação sobre o funcionamento do paciente. O terapeuta por vez necessitara ter uma boa capacidade de continência, para tolerar e transformar os sentimentos, tais como, a “fúria narcísica” (Kohut) que surge no decorrer do processo psicoterapêutico. De acordo com Kohut, algumas formas de transferência narcisista: fusional, na qual o paciente espera que o terapeuta adivinhe e dê conta das necessidades dele. O tipo “gemelar”, na qual o paciente espera que o terapeuta seja como ele é, que apoie e confirme suas teses. E a do tipo especular, na qual espera que o terapeuta reconheça sua grandiosidade exibida por ele.

   O paciente do caso A costumava apresentar o seguinte padrão: todas as vezes que a terapeuta se afastava por motivo de férias ou algum imprevisto importante que necessitasse desmarcar a consulta, tornava-se comum a ausência na sessão seguinte ao retorno. Uma forma de demonstrar sua ambivalência com o afastamento da terapeuta. Ao mesmo que trazia à tona sua dúvida quanto a seu valor e aceitação, uma ferida primitiva, também precisava sentir-se no controle, e por isso a falta seguinte, para não se sentir tão vulnerável, já que apresentava medo da dependência afetiva.

   “Estou com medo de ficar dependente de ti, porque eu não consegui decidir aquilo, eu precisava da tua opinião, e não deu tempo, fiquei com raiva não de ti, mas porque eu queria muito vir... às vezes eu preciso de ti e tu não estás”. Já a paciente do Caso B, ligou para terapeuta enquanto está estava de férias, para certificasse que a terapeuta estava viva porque, segundo ela, precisava dela viva para continuar vivendo. Por fim, entende-se que os conceitos, a caracterização, bem como as vinhetas clínicas até aqui apresentadas são apenas alguns delineamentos da estrutura narcisista que vão além do que abordado. À guisa de conclusão, sabe-se que um paciente narcisista pode beneficiar-se de uma psicoterapia em que estejam claras as nuances desta estrutura pois, compreende-se que possuir uma dose de narcisismo, gostar-se, ser bom naquilo que faz, mas sem escravizar-se é saudável. Porém, sofrer por conta das próprias exigências, toma outro contorno que se afasta do narcisismo saudável. Como psicoterapeutas, vivencia-se

   cotidianamente a presença de pacientes com vários níveis de narcisismo e sofrimento, o delineamento do processo terapêutico bem-sucedido com empatia e cuidado pode descortinar o aprisionamento destes pacientes que tiveram seu desenvolvimento reprimido. Acredita-se que é possível vislumbrar um bom prognóstico, quando o gelo intrapsíquico e a angústia interior forem atingidas neste processo e propiciarem o crescimento emocional destes pacientes.