I. INTRODUÇÃO
A Idade Média não conheceu o conceito de espiritualidade: doctrina referia-se à fé em seu aspecto dogmático e disciplina, sua prática, enquanto spiritualitas (que aparece em textos filosóficos, a partir do XIII) denota tão somente a qualidade daquilo que é espiritual; tal, é um conceito moderno (a partir do XIX).
Segundo a maioria dos autores, “exprime a dimensão religiosa da vida interior e implica uma ciência da ascese, que conduz, através da mística, à instauração de relações pessoais com Deus”; a partir daí, falar-se-á de “correntes espirituais” e “escolas de espiritualidade”.
O autor não se atém a essa definição, que não possui significado para tempos anteriores ao XVI; do mesmo modo a “história da espiritualidade não pode se limitar ao que foi fixado por escrito da experiência interior dos monges”. Ao lado dessa, segundo o autor, há uma outra, constatada por gestos, cantos, representações, etc. agora, para ele, “a espiritualidade já não é encarada como um sistema codificado das regras da vida interior, mas antes como uma relação entre certos aspectos do mistério cristão, particularmente valorizados numa dada época e certas práticas (ritos, orações, devoções), elas próprias privilegiadas relativamente a outras práticas possíveis no interior da vida cristã”.
Defendendo isso, afirma que “com efeito, as Sagradas Escrituras veiculam tantos e tão diversos elementos que cada civilização é levada a entre eles fazer suas escolhas, em função do seu nível de cultura e das necessidades específicas” – ele, em seguida, lembra que “tais variações se situam sempre dentro de determinados limites, impostos pelos dados fundamentais da Revelação e pela Tradição, que não podem ser ultrapassados sem que se corra o risco de cair na heresia”.
Na Idade Média, onde a coesão dogmática ainda não está bem assegurada, e por isso, além do abismo entre uma elite letrada e uma maioria não letrada, há diferentes formas de ler e interpretar a mensagem evangélica.Tal definição de espiritualidade (“unidade dinâmica do conteúdo de uma fé e do modo como esta é vivida por homens historicamente determinados”) concede um amplo espaço aos leigos.
II. DESENVOLVIMENTO
1. O EVANGELHO NO MUNDO – SÉCULOS XII E INÍCIO DO XIV
O século XIII aprofundou algumas instituições surgidas na época da renovação monástica (1080 – 1130), como por exemplo o evangelismo. Mas é somente com São Francisco é que esse evangelismo foi admitido pela Igreja, isso por que, por um lado, cria-se que a perfeição evangélica só poderia ser vivida no claustro e por outro por que ao longo do XII, o Evangelho foi usado como arma por movimentos contestatórios e heréticos. Por um lado, é verdade que em determinadas regiões esses movimentos fascinaram a muitos, mas vê-se também que, numa época de progresso econômico e demográfico e visível elevação do nível de vida, o realce que movimentos como o catarismo davam a certas coisas que condenavam, os colocava em posição delicada diante da sociedade. Do mesmo modo, talvez fosse legítima a referência exclusiva ao Evangelho e o desejo de uma religião interior sem a mediação do clero, mas nada justificava a condenação à vida carnal.
A função histórica das Ordens Mendicantes foi encontrar a fórmula que permitisse a cada cristão viver em conformidade com o Evangelho, dentro da Igreja e do mundo.
A conversão de Francisco ocorreu já em idade adulta e sua conversão à pobreza de Cristo e sua pregação fascinaram a muitos contemporâneos, que não tardaram a vê-lo como santo.
Segundo o autor, em sua pessoa, ele conseguiu sintetizar as aspirações dos movimentos precedentes e a “mais autêntica tradição cristã”: sua devoção a Cristo e o desejo de viver a mais absoluta pobreza não excluía a fidelidade à Igreja; associou o objetivo apostólico e a experiência ascética – evangelismo integral e espírito de obediência.
Para ele, a inovação dos Menores está na vontade de viver uma vida pobre e errante, recusando a posse de bens pessoais e mesmo comunitários, rompendo, com isso, os laços entre o estado religiosos e a condição senhorial.
Mesmo que fossem verdadeiros santos, os monges eram vistos pelos leigos (principalmente camponeses) como aristocratas. Os Menores, rejeitando toda forma de apropriação e particularmente o dinheiro, por se tratarem da raiz da violência e do ódio, confiavam suas vidas à Providência e se lançavam a trabalhos manuais – no início da Ordem, o recurso à mendicância era um complemento somente.
Outra inovação foi o fato de a ordem abrigar leigos e clérigos, com os mesmo direitos e deveres, sendo essencial viverem todos a pobreza evangélica. Mas isso também trouxe problemas; entretanto, a relutância de Francisco à ciência é na verdade repulsa ao afastamento do ideal primitivo da Ordem que os
estudos podiam levar, numa sociedade onde conhecimento anda a par e passo com a dominação e a riqueza.
O sentido da hierarquia para Francisco mostra sua vontade de criar uma comunidade religiosa baseada menos em uma hierarquia vertical que na “partilha de tarefas e na correção fraterna” – o demonstram os termos minister e guardião. Com relação à sociedade civil e à Igreja (instituição) orienta uma atitude de submissão, mas pede que evitem privilégios, para não acontecer de sofrerem constrangimentos de estruturas limitadoras.
A mensagem franciscana teve uma relação bastante original com a cultura do seu tempo – também razão do seu sucesso. Francisco torna sua mensagem acessível a todos usando a língua vulgar na religião, convidando à conversão, à paz à penitência o povo; desse modo, diminuía o abismo havido entre cultura popular e religiosa: Francisco faz com que a língua vulgar se enriqueça com vocabulários que expressam sentimentos religiosos, e o Cântico do Irmão Sol é o maior expoente. O autor afirma que tal “reconciliou um povo com a sua religião através da palavra e do canto”.
Buscando legitimação para a Ordem, sobretudo sobrenatural, procurou-se chamar a atenção para o fenômeno de Monte Alverne, desejando-se representar Francisco como o segundo Cristo, o que inevitavelmente fez perder-se de vista o significado do testemunho do Pobre de Assis – mesmo os “Espirituais”, no início do XIV, quiseram fazer da pobreza o fundamento de uma “eclesiologia anti-hierárquica”. Ainda assim, a mensagem franciscana no XIII marcou a espiritualidade desse século pelo cristocentrismo radical, manifestado na devoção a Paixão: eis “um meio privilegiado para a alma aceder, através da contemplação da humanidade sofredora do Salvador, à contemplação de sua divindade”.
A espiritualidade franciscana aprofundou a piedade popular e a devoção mariana (em evidência desde o XII, mas amplamente difundida com os mendicantes). Igualmente a Ordem fundada por São Domingos, em 1215, conheceu grande sucesso no XIII e, no final deste século, já havia conventos dominicanos nas principais cidades da cristandade latina; era formada por clérigos, assistidos por leigos e exercia grande influência sobre a sociedade do seu tempo.
A pregação dos dominicanos ia além, aprofundando em questões doutrinais por se tratarem de clérigos – e assim não receavam, e se apoiavam mesmo, numa cultura livresca, priorizando a vida intelectual.
Por crer que sua mensagem só teria crédito se, além da vida de oração e estudo, sua comunidade fosse despojada de bens imóveis e rendimentos; para Domingos, a pobreza era uma arma contra a heresia e uma condição necessária para que o testemunho de pregador fosse recebido – assim aceitavam a posse das igrejas dadas a eles e privilegiavam a mendicância.
Um dominicano do século XIII, São Tomás de Aquino, tem papel importante na espiritualidade do seu tempo, pois afirmando que a Graça não
substitui a natureza, acaba afirmando que não se pode negar o mundo para encontrar Deus pois, quanto maior for o homem, assim maior será Deus, fazendo surgir uma “espiritualidade da ação temporal”, coincidindo secularidade e radicalidade evangélica. Igualmente importante, mas já em princípios do XIV, foi Mestre Eckart, também dominicano, segundo o qual “a iluminação da inteligência e a experiência do amor, longe e se oporem, permitem o regresso do homem ao seus estado original”.
Até fins do XIII, os leigos que desejassem uma vida religiosa mais intensa, ou se ornariam um monge ou um irmão converso; desde 1120 – 1130, a aristocracia via abrir-se-lhe uma oportunidade de santificação: as Ordens Militares, mas após 1200, cavaleiros leigos partem mais amiúde – não necessariamente como “monges-guerreiros” – para as cruzadas, podendo-se falar de ma espiritualidade da cruzada (que envolvia toda uma vida e conduta moral diferentes): eis que o tema da militia Christi se torna recorrente.
No XIII, mais original ainda eram as confrarias: a reunião de leigos (como os sacerdotes em confrarias ou comerciantes em guildas; agrupados sob uma base territorial ou sócio-profissional) em grupos que aspiravam uma vida religiosa mais autônoma e ativa; praticavam a ajuda mútua (o termo caridade deve ser visto menos como a distribuição aos pobres que um amor que deveria reinar entre os membros) e funerais dos membros defuntos; algumas eram autônomas em relação a instituições religiosas, mas todas em termos administrativos e punham em pé de igualdade homens e mulheres; clérigos e leigos.
Igualmente importantes foram as confrarias penitentes que buscavam, de forma mais ativa, fazer penitência; foram logo protegidos por bispos e pelo papa e, em 1286 e 1289, foram colocados sob a jurisdição dos Mendicantes, causando divisões dentro das confrarias.
Outro movimento importante foram as devoções: a mais importante foi a dos flagelantes (1260), bem original em dois sentidos: tornou pública, ao ar livre, uma prática que era privada, principalmente dos monges, a flagelação, buscando se igualar ao crucificado; e juntou dois ritos distintos, a flagelações as procissões penitenciais (ou litanias), num rito que se renovou periodicamente e que visava diminuir perturbações sociais.
Até o séc. XII a espiritualidade do “desprezo pelo mundo” e a nenhuma importância dada ao leigo (menor ainda – e, portanto, mais impossível de alcançar a santidade – se não fosse bem nascido) vigoravam: soeram dignos da santidade principalmente monges e bispos e leigos nobres, bem feitores da Igreja. No XII, esse conceito muda e para além disso, e de uma conduta moral ilibada, era necessário imitar Cristo em seu despojamento e sofrimento.
A partir de 1200, o discurso misógino não desapareceu, mas surgiu uma espiritualidade feminina, original, e já no XIII algumas mulheres que viviam uma vida espiritual mais intensa, adquiriram autonomia.
A difusão de uma espiritualidade penitencial, na medida que ligava a salvação ao amor e ao coração contrito, muito ajudou a emancipação religiosa das mulheres, principalmente através de figuras como Maria Madalena, favorecendo uma nova concepção de santidade, fundada na conversão e arrependimento e não mais ligada à virgindade física, mas espiritual. E nesse meio espiritual, o XIII conhece um intenso ingresso de mulheres na vida religiosa; as que não o fizeram (por não terem recursos para o dote) se consagraram a uma vida “semi-religiosa”, como as beguinas: mulheres, solteiras ou viúvas que, vivendo em comunidade ou solitárias, levaram uma vida de oração e trabalho manual e caridade (para melhor controlar o movimento, se estimulou a construção de beguinarias, onde viviam em pequenas casas, sendo este conjunto rodeado por grandes muros) – pôr as beguinas não estarem presas por votos e poderem retornar ao mundo quando quisessem, muitos clérigos não as viam como uma forma de vida religiosa.
Entrar para a vida religiosa para a mulher do XIII era o único modo de manter o domínio sobre o seu corpo; e como as restrições da vida religiosa, para a mulher, não significasse a mesma coisa que para o homem, surgiu uma linguagem religiosa do corpo: buscar imitar a Cristo em sua paixão, nascendo uma intensa devoção à união mística com a Eucaristia e com a Paixão de Cristo.
Tais mulheres passaram a escrever, dando maior uso à língua vulgar e, por serem estranhas à cultura dos monges e das universidades, falavam de Deus “tendo como referência o modelo literário profano do amor cortês”. Mas tal incomodou a alguns clérigos que conseguiram (no Concílio de Viena) se condenasse as beguinas – até que a Igreja acabasse com o movimento, no início do XIV. Tal incômodo era devido à subversão que representava um discurso sobre Deus, enunciado na língua do povo por uma leiga.
2. O HOMEM MEDIEVAL EM BUSCA DE DEUS
O autor quer conhecer a relação do homem com Deus: pela oração não é possível, uma vez que poucos as recitam e com frequência são desconhecidas. O homem do século XII prefere fazê-lo pelos gestos e outras formas de piedade e devoção. A principal é a peregrinação e os lugares visitados se multiplicam no XII e se tornam cada vez mais distantes – e os mais frequentados são os que possuem preciosas relíquias.
Igualmente importantes são os milagres, que mostravam que Deus continuava se revelando no meio dos homens: por isso os homens do XII buscavam constantemente os milagres, suficientes para dar fama de santidade – os mais esperados eram as curas –, até que no final do século, se estabelecesse um processo mais sistemático de canonização.
Para o autor, o exame dessas devoções populares (como a da Eucaristia, onde o povo pressionava o sacerdote para que mostrasse a hóstia consagrada, por considerá-la com poderes benéficos) acusa uma evolução da piedade que segue no sentido da acentuação do caráter cristão – mesmo as peregrinações,
através do XII, mudam o sentido: se antes se peregrinava a locais que guardavam relíquias, por ser um local onde Deus atuava através delas, sem se perder essa noção (que, entretanto, passa a ser o menos importante), após a metade do século procura-se “reencontrar Cristo na sua vida mortal”.
Regra geral, no XII, as atenções se voltam aos mártires dos primeiros séculos cristãos e não somente, como na Alta Idade Média, na taumaturgia. Por essa época, a relação do homem com o divino se dá pela crença de que um esforço é recompensado com milagres: deixar a família e enfrentar os perigos do caminho agora é meritório – é uma evolução que liga a graça esperada e o esforço pessoal.
O próprio conceito de santidade se modifica: se antes do século XII o santo já nascia eleito por Deus, a partir daí, ela vai estar subordinada a uma vida ascética – para Vauchez, “pela primeira vez na história do Ocidente medieval, a própria Igreja sublinhava a ambiguidade dos sinais do sagrado”; para ele, a sobreposição da fé e obras sobre o miraculoso é sinal de espiritualização que se opera, influindo no modo de se escrever hagiografia.
Deve-se notar, na segunda metade do XIII (c. 1260) e principalmente no início do século seguinte, o grande sucesso, principalmente entre leigos, que conheceu a Legenda Áureade Tiago de Voragine, dominicano, que nas hagiografias privilegiou as narrativas exemplares, embora não deixando de lado o maravilhoso.
Com relação à arte, a Igreja se utilizou bem desse recurso para tentar fazer um povo pouco polido começar a intuir uma realidade superior. Entretanto, não se tem como seguro que tenha sido primordial a intenção pedagógica ao se executar obras de arte – a intenção talvez fosse a de provocar um choque emocional que repercutisse profundamente no espírito.
A Igreja deveria oferecer um “antegosto” do céu (deve-se lembrar a importância do culto litúrgico para a religião cristã); mirando-se na simbologia da luz, de São Dinis, abade (1081 – 1151), segundo a qual a alma pode aceder ao divino através da luz irradiada pelas coisas criadas, as obras de ourivesaria e grandes vitrais se multiplicaram nas igrejas, que ajudavam o homem a elevar-se. Contra tal estética se opôs São Bernardo de Claraval, representante do monaquismo reformado, que embora admitisse aos leigos, proibiu uma tal ornamentação rica nas igrejas abaciais e entre os religiosos, considerando perigoso esse luxo, cuja ocupação com ele impedia dar esmolas e fazia amar-se o prazer por si mesmo. S. Bernardo opõe tudo isso (em seu rigorismo ascético) uma estética da pobreza, austera, com linhas puras e simples.
Assim, na Idade Média, há duas espiritualidades da arte: a que busca acessar o divino pela beleza sensível, e uma outra que a rejeita. Já no XIII, triunfou uma síntese intermediária dessas duas tendências, nas catedrais góticas, onde se buscou oferecer um clima de unidade e despojamento.
Para o autor, a medida em que a devoção se individualizava, a vida do espírito deixava de ser privilégio dos monges; e com a diminuição das pressões
externas, dos ânimos violentos e, agora, com mais “tempo livre”, clérigos e leigos se dedicam mais ao recolhimento sobre si e à reflexão, conduzindo a uma nova tomada de consciência e se notando uma diminuição da perspectiva escatológica – há uma mudança na mentalidade e o juízo final não angustia mais; a confissão toma uma importância maior ainda: a consciência dos pecados e sua confissão, por serem tão humilhantes, passam a ter maior consideração que as obras.
A matéria para a reflexão, na época, são as Sagradas Escrituras, que alimenta a vida espiritual do homem medieval, que a abre ao acaso para conhecer um destino ou uma vocação (como São Francisco o fez).
Ao longo do século XIII, nas escolas urbanas, os teólogos foram aprimorando métodos de exegese: Abelardo recorreu à dialética e à lógica (o que escandalizou S. Bernardo), em contraposição ao puro comentário espiritual; a partir daí, houve uma teologia escolástica e uma outra mística.
No século XIII, com São Tomás de Aquino, a teologia leva a melhor sobre a espiritualidade; São Boaventura, desconfiado, insistiria no primado do Amor, numa abordagem mística e piedosa.
A mística do XII não se resumia à cisterciense (da elevação animal, passando pelo racional, até a espiritual, alcançando um conhecimento íntimo do Deus-trindade). Alguns (o que foi o caso dos cônegos da Escola de São Victor, fundada em 1113) buscaram associar reflexão intelectual à procura amorosa da presença divina, ligando a ida para Deus à análise a análise das realidades psicológicas e faculdades da alma – os Vitorinos tiveram grande influência sobre Boaventura.
Da mesma forma, surgiu uma espiritualidade feminina, devota à humanidade de Cristo e sua Paixão, ou uma mística em que menos interessava subir a Deus que se abandonar n’Ele: um “perder-se para melhor se reencontrar|”; um “tornar-se pela Graça aquilo que Deus é por natureza”, como escrevera Guilherme de Sain-Thierry.
Existem várias formas de identificação com o ser amado, e “por diversas que sejam tais atitudes, é, todavia o mesmo sentimento que as inspira.
CONCLUSÃO
A Vauchez interessa encontrar uma relação entre a evolução da espiritualidade e as transformações da sociedade medieval. Nesse sentido, concorda com Leopold Genicot que encontrou uma a seguinte relação: “as exigências espirituais aumentam à medida que afrouxam as sujeições econômicas”, para isso contrapondo a época carolíngia (período de escassa produção aos séculos XI – XIII, período de progressos; se antes fora o cristianismo marcado por um conformismo religioso e moralista, agora reinou uma efervescência mística, denotada pela multiplicação das regras, acompanhada por um renascimento intelectual.
Igualmente aumentaram as aspirações religiosas, e a recusa à posse, seja privada, seja comunal, representou uma importante ruptura com o regime senhorial, só possível pelo grande aumento do número de cidade, oportunidades de trabalho e “burgueses caritativos” e, de forma interessante, a exaltação da pobreza coincide com uma elevação do nível de vida (quando, com número suficiente de ricos, a pobreza se tornou um valor evangélico e um ideal).
A vida espiritual também é, segundo o autor, tributária das relações sociais: as relações do homem com Deus estão baseadas no modelo rei-vassalo – ele identifica no espírito de cruzada e combate a hereges e infiéis à obrigação de defesa que o homem deve ao seu senhor ao vê-lo em perigo de ser despojado. Contudo Vauchez evita tornar a vida espiritual um mero decalque das transformações sociais do VIII ao XIII: muitas vezes as transformações na vida espiritual forneceram a solução para questões da vida social e da Igreja e mostra o exemplo da aceitação da pobreza como um valor positivo e um ideal, que responderia ao problema dos cátaros, permitindo a essa sociedade resolver suas próprias contradições.
Ao lado de variações do ideal religioso, que o autor caracteriza como conjuntural, ele identifica continuações de longa duração na espiritualidade medieval. Um exemplo de tendência geral se refere ao que chama de “personalização da fé religiosa”: por exemplo, na Alta Idade Média, se o homem era palco da luta entre forças demoníacas e celestes, e acaba se tornando um joguete dessas forças, sendo assim os rituais um precioso método para se relacionar com Deus, a partir do XII a noção de responsabilidade e a recusa de ser mero joguete, faz com que o homem personalize a fé numa “ciência da união com Deus baseada na experiência mística, cujo ponto de partida passa a ser a devoção à humanidade de Cristo”.
O mesmo se dá com relação à conversão que, se na primeira idade feudal significava deixar o mundo e se enclausurar, no XII ainda isso aparece, mesmo
que logo depois, no mesmo século, se refira a leigos que permanecem entre os homens sem mudança de estado – a fuga ao mundo foi interiorizada.
Segundo o autor ainda está por explicar como surgiu uma espiritualidade popular, que é um conjunto de crenças e aspirações, coerentes e que se revela em “explosões coletivas de fervor” e quais as suas relações com a do clero.
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